Cerimônias fúnebres têm aspecto psicológico importante para quem fica
Ausência de jogadores no funeral de Pelé levantou discussões sobre a relevância dos rituais
Entrevista com Maria Julia Kovács - Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2023/01/cerimonias-funebres-tem-aspecto-psicologico-importante-para-quem-fica.shtml
“A morte é grande conselheira”:a lista de 'últimos desejos' que mobiliza amigos de ativista com câncer.
André Biernath - @andre_biernath
Da BBC News Brasil em Londres
16 janeiro 2023
CRÉDITO,DIVULGAÇÃO / MARIA FARINHA FILMES
Ana Michelle Soares é uma das principais vozes do movimento paliativista brasileiro
Em tratamento contra o câncer há 12 anos, a jornalista e escritora Ana Michelle Soares é uma das maiores referências do movimento pela valorização dos cuidados paliativos no Brasil.
Com a recente piora de seu estado de saúde, ela precisou ficar internada praticamente o tempo todo durante os últimos três meses.
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E foi durante uma conversa com amigos próximos que ela teve uma ideia: fazer uma bucket list, ou uma lista de coisas para fazer antes de morrer.
Entre os desejos, Ana Mi — como é conhecida — incluiu coisas como "fazer algo perigoso", comer alguns pratos específicos e repetir experiências simples, como rever o cachorro e dormir mais uma vez em casa.
Assim que compartilhou a lista num grupo de WhatsApp, familiares e amigos se mobilizaram para realizar cada um dos desejos dela — e criaram uma rede de apoio que envolveu até a cantora Duda Beat, o chef de cozinha Rodrigo Oliveira e a professora de filosofia Lúcia Helena Galvão.
"Esse momento que estamos vivendo mostra o sucesso absoluto de uma vida. No auge da fragilidade, ela foi capaz de tomar decisões sobre o que é importante e sagrado para si mesma", comenta a médica Ana Claudia Quintana Arantes, amiga de Ana Mi e fundadora da Casa Humana, uma instituição que trabalha com reabilitação e cuidados paliativos.
'Posso estar morrendo, mas estou gata'
Em outubro de 2021, a BBC News Brasil publicou uma reportagem sobre os erros e os mitos a respeito dos cuidados paliativos e do tratamento de doenças graves no país.
Ana Mi foi uma das personagens da matéria e compartilhou um pouco de sua história numa entrevista.
Ela contou que recebeu um diagnóstico de câncer de mama em 2011, quando tinha 28 anos de idade.
Quatro anos depois, em 2015, os exames mostraram que o tumor havia se espalhado para outras partes do corpo, num processo conhecido na medicina como metástase.
Com bom humor, Ana Mi lembrou de um episódio logo depois de receber essa notícia há oito anos. Ela se preparava para ir à balada, colocou um vestido vermelho, se olhou no espelho e pensou: "Posso estar morrendo, mas estou bem gata."
"À época, eu vi no prontuário médico que, a partir dali, o objetivo do meu tratamento era 'paliativo'", relatou.
"Aquela palavra soava estranha para mim, era como se eu estivesse morrendo. E eu me sentia bem."
No final de semana após a balada, Soares resolveu entender melhor o que esse tal de paliativo realmente significava. "Quando finalmente compreendi, percebi que era algo óbvio, que deveria ter sido oferecido a mim desde o começo do meu tratamento", disse.
"Decidi então começar a fazer cuidados paliativos por mim mesma. Fui atrás de terapia, suporte espiritual e resolvi muitas questões que me causavam sofrimento", completou.
Nos últimos oito anos, Soares virou uma das vozes mais ativas do movimento paliativista brasileiro.
Ela lançou os livros Enquanto Eu Respirar, em 2019, e Vida Inteira, em 2020, ambos pela Editora Sextante, cuida da conta de Instagram @paliativas, que tem mais de 170 mil seguidores, e coordena a Casa Paliativa, um espaço de convivência para pacientes com enfermidades que ameaçam a vida.
"Eu posso até estar com uma doença grave. Mesmo assim, ainda vale a pena viver da melhor forma possível", declarou à BBC News Brasil.
Arantes destaca que o trabalho de Ana Mi congrega e inspira pacientes em cuidados paliativos de todo o Brasil.
"Em 2019, quando montamos a Casa do Cuidar, resolvemos criar também a Casa Paliativa, e Ana Michelle foi a responsável por estruturar esse projeto, que reúne pacientes independentemente do tipo de doenças que eles têm", diz a médica, que também é autora dos livros A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Histórias Lindas de Morrer (Editora Sextante).
"Hoje, a Casa Paliativa tem um grupo de Facebook com mais de 2,3 mil participantes e um banco de 130 aulas disponíveis gratuitamente sobre dor, fadiga, ansiedade, insônia, sexualidade, suporte familiar, luto, desistir e outros temas relacionados ao sofrimento", informa Arantes.
"Fizemos fóruns de cuidados paliativos para pacientes em que esperávamos 200 ou 300 pessoas. No total, foram 15 mil inscritos e algumas aulas tiveram mais de 8 mil participantes simultâneos", completa.
Os últimos desejos
Numa nova entrevista à BBC News Brasil, realizada por telefone direto do hospital onde está internada, Ana Mi revelou que a ideia de criar uma bucket list veio a partir da história de uma grande amiga: Renata Lujan, que também teve câncer, foi ativista do setor e morreu em 2018.
"Mesmo com a Renata muito mal, as pessoas fingiam que nada estava acontecendo. Todos sempre usavam o discurso de que logo ela ficaria melhor e sairia daquela condição", lembra.
"Ninguém entendia que ela estava numa situação grave e precisava de uma rede de apoio, com momentos para dar risada, brincar, falar besteira… Ou seja, deixar de tratá-la com aquele ar morimbundo, para encará-la como uma pessoa viva", explica.
O termo em inglês bucket list vem da frase kick the bucket, ou "chutar o balde", em tradução livre. Trata-se de uma figura de linguagem equivalente ao "bater as botas" em português.
Essa expressão, inclusive, serviu de título para um filme de 2007, lançado no Brasil como Nunca É Tarde Demais. A história, estrelada por Morgan Freeman e Jack Nicholson, acompanha dois amigos em estado terminal, que resolvem fazer uma viagem e cumprir uma lista de desejos antes que ambos "chutem o balde" — ou "batam as botas".
"A Renata tinha pouco tempo de vida, mas conseguimos fazer muitas coisas que eram importantes para ela", diz Ana Mi.
Entre os desejos que puderam ser realizados a tempo, Renata conseguiu visitar os campos de lavanda de Cunha, em São Paulo, e recebeu a benção do padre Fábio de Melo, de quem era grande admiradora.
"Sempre me incomodou muito o fato de as pessoas só homenagearem alguém querido depois da morte. É só nesse momento que vemos aquelas postagens nas redes sociais, que repetem os mesmos discursos de sempre", aponta Ana Mi.
"Por que não dizer isso para a própria pessoa, enquanto ela ainda está viva?", questiona.
Foi a partir dessa experiência prévia — e do agravamento de seu quadro clínico e do esgotamento das opções terapêuticas contra o câncer — que a ativista resolveu montar sua própria bucket list. Entre os desejos, ela listou:
- Fazer algo perigoso;
- Comer dobradinha do [restaurante] Mocotó e da mãe, polvo da Gê e "arroz imoral" do Tom [dois amigos];
- [Participar da] Festa na Vila inFINITO;
- Dormir mais uma vez em casa;
- Ver o documentário;
- Conhecer [a professora de filosofia] Lúcia Helena Galvão pessoalmente;
- Ver o Malbec [cachorro]
Mobilização imediata
O empreendedor social Tom Almeida, amigo próximo da ativista, relata que a mobilização em torno da bucket list aconteceu de forma orgânica. Segundo ele, amigos, familiares e admiradores se voluntariaram para ajudar e se organizaram a partir de um grupo de WhatsApp criado pela própria Ana Mi.
Uma das primeiras surpresas foi a criação de um clipe musical, em que a cantora Duda Beat faz uma versão da canção Bixinho, uma das preferidas de Ana Mi.
A artista, inclusive, gravou uma mensagem em que "deseja muita luz e muito amor" para a ativista.
Em um dos trechos, a música diz: "É já que estamos aqui/ Vamos aproveitar/ O tempo que nos resta."
Além da artista, várias pessoas também participaram da ação: elas enviaram vídeos em que cantam e dançam o hit de Duda Beat.
"Toda essa comoção é bonita e divertida, com muitas pessoas contribuindo e celebrando ao mesmo tempo", resume Almeida, que também é fundador do Movimento inFINITO, especialista em luto e ativista dos cuidados paliativos.
"Muitas pessoas vivem esse momento crítico, com risco de perder a vida, e não falam sobre. A morte ainda é um grande tabu", constata ele.
"Mas existe vida até o último momento. Ao cumprirmos a lista, estamos celebrando isso e gerando uma onda de amor e de reconhecimento sobre tudo o que Ana Mi construiu e inspirou", complementa.
Tom Almeida (à esquerda) e Ana Mi (à direita) no distrito de São Francisco Xavier (SP)
Outra meta concluída recentemente foi a de comer dobradinha preparado no restaurante Mocotó, localizado na capital paulista.
O responsável pelo prato, o chef Rodrigo Oliveira, gravou um vídeo em que fala sobre o envio da marmita e deseja que o prato "traga um gosto de casa e um gosto do Nordeste".
Para Almeida, o trabalho de Ana Mi é capaz de "legitimar o papel dos pacientes em cuidados paliativos".
"Muitas vezes, as associações do setor focam muito naqueles indivíduos que conseguiram se curar, o que de fato é maravilhoso", diz.
"Mas também devemos prestar atenção naqueles que não tem a possibilidade de cura. Eles ainda têm a vida. E a Ana Mi consegue trazer tudo isso de forma poética e bem humorada", define.
Arantes concorda. "Não existe fracasso no processo de adoecimento e de finitude. Temos que parar de dizer que 'fulano perdeu a batalha contra o câncer'. Falar isso é vergonhoso", critica.
Pré-estreia no hospital
Outro desejo de Ana Mi foi o de assistir um documentário sobre longevidade chamado Quantos Dias, Quantas Noites, produzido pela Maria Farinha Filmes, para o qual ela deu entrevistas.
"Eu sempre brincava com o Cacau Rhoden [o diretor]: 'Se eu morrer antes de ver o filme, eu te mato'", diz ela.
O problema é que o documentário está em fase de finalização e só deve ser lançado daqui a alguns meses.
"Eu fiquei muito honrado de ela colocar o filme na bucket list. Não tivemos nenhum tipo de vaidade ou narcisismo em querer revelar o material só quando ele estivesse totalmente finalizado", relata Rhoden.
"Como a Ana Mi estava na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], pensei que iríamos mostrar a versão na tela de um computador. Mas os amigos e a equipe do hospital resolveram fazer uma verdadeira sessão de cinema", conta o diretor.
No dia 6 de janeiro, toda essa turma decorou o auditório do Hospital Nove de Julho, na capital paulista, com direito a balões, cartazes e pipoca.
Ana Mi foi então transferida com todos os cuidados da UTI para o local de exibição. Ao entrar na sala, foi ovacionada, relatam os amigos e profissionais da saúde presentes.
"Foi uma das experiências mais emocionantes e loucas da minha vida", admite Rhoden.
"O filme traz uma perspectiva completamente diferente sobre a longevidade, não apenas como essa busca incessante por chegarmos a uma idade avançada, mas também por meio da intensidade e da relatividade do tempo", diz.
"E a história da Ana Mi traz uma provocação reveladora e contundente sobre como nós nos relacionamos com o tempo que temos", completa.
O diretor diz que conhecer a escritora e ativista o transformou completamente. "Nunca mais serei o mesmo. Ela carrega uma força de inspiração que jamais vi. Mesmo com o agravamento da doença, ela traz uma pulsão de vida exuberante."
Arantes avalia que toda essa experiência também ajuda a refletir sobre o que é ter sucesso na vida.
"Para mim, esse sucesso não significa morrer velhinho e saudável, com o colesterol controlado, sem nunca ter sido diagnosticado com câncer, doença cardíaca ou osso quebrado. Sucesso é chegar no final da vida com a capacidade de fazer um grupo de WhatsApp para que as pessoas viabilizem os seus sonhos", afirma.
"O que a Ana Mi faz é despertar o melhor de nós. Ela transforma milhares de vidas por meio do amor, da responsabilidade de abraçar uma causa e de ser dona da própria vida, mesmo que o corpo já esteja frágil."
Outras ações relacionadas à bucket list já atendidas foram a visita da professora de filosofia Lúcia Helena Galvão e uma campanha de doação de sangue entre seguidores e admiradores.
O que são os cuidados paliativos?
Em resumo, cuidados paliativos são uma área que lida com o sofrimento gerado pelo diagnóstico e pelo tratamento de uma doença que ameaça a vida.
"A enfermidade envolve várias dimensões de sofrimento, da dor física às aflições espirituais e existenciais", explicou o geriatra Douglas Henrique Crispim, do Núcleo de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas de São Paulo, na reportagem da BBC News Brasil sobre o tema, publicada em outubro de 2021.
"Muitas vezes, o paciente morre na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], longe de seus familiares e submetido a procedimentos que causam angústia e não vão mais salvar a vida dele", apontou.
O paliativista atua junto do enfermo e de toda a sua família para aliviar possíveis focos de aflição e garantir o mínimo de bem-estar, dignidade, autonomia e independência neste momento.
Para Crispim, os profissionais de saúde ainda carregam uma noção muito equivocada do que é cuidar de alguém.
"A nossa medicina é condicionada a entregar três coisas como valor: exames, medicamentos e procedimentos", disse.
"Mas há um limite de até onde a medicina vai e nós podemos, sim, prover um outro tipo de cuidado, que aproxima e conecta as pessoas sem 'abandonar' o paciente", completou.
"A sociedade tem um entendimento de que fazer intervenções é sempre bom e deixar de fazer é ruim. No cuidado paliativo, nós também prescrevemos tratamentos e procedimentos, mas nosso objetivo principal não é mais o controle da doença ou a cura", resume Arantes.
Os cuidados paliativos não significam morte e podem estar presentes desde o diagnóstico
Que fique claro: a decisão sobre fazer ou não determinado tratamento depende de uma conversa franca e honesta, que envolve toda a equipe médica, o paciente (se ele estiver consciente) e a família. A partir dessa reunião, é possível chegar a um consenso e tomar uma decisão em conjunto sobre o melhor caminho a seguir.
Ao contrário do que diz o senso comum, os cuidados paliativos não são indicados apenas no final da vida — e idealmente eles devem estar presentes desde o momento do diagnóstico de uma enfermidade que traz sofrimento e é potencialmente fatal (como o câncer e as doenças cardíacas, neurológicas, renais…).
Morte como conselheira
Ana Mi entende que toda a comoção e as homenagens das últimas semanas têm a ver com aquilo que ela construiu.
"Penso que sou uma pessoa que sempre está à disposição. E isso é algo que a gente escolhe estar. Eu estou sempre à disposição da vida", explica.
Questionada pela BBC News Brasil sobre como esses 12 anos recentes transformaram sua visão de mundo, Ana Mi destaca que "a morte se tornou uma grande conselheira".
Mas quais seriam os conselhos que ela aprendeu com a morte nesse período?
"O primeiro deles é não perder tempo", responde.
"E o segundo é apreciar a vida da forma como ela se apresenta", conclui.
Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64295487
MARIA JÚLIA KOVÁCS: ‘ESTAMOS EM LUTO COLETIVO LONGO, COM UM PRESIDENTE QUE FALA COISAS QUE NOS HORRORIZAM’
12 DE JULHO DE 2022 CONCIENCIA
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Por Letícia Naísa
Crédito da imagem: Cris Vector
“O luto é um processo singular e próprio de cada pessoa, mas guerras, grandes desastres, naturais ou não, e a pandemia, que é uma grande crise sanitária e virou um desastre, atinge a todos. Nesse sentido, é coletivo sim. Dentro desse coletivo, temos nossas próprias formas de lidar com as circunstâncias. A pandemia não nos afetou igualmente, alguns de nós perdemos pessoas, outras não perderam ninguém por morte, mas perderam situações de vida significativas, como a casa, o emprego. Em um contexto como esse, a gente se comove com a situação de outras pessoas também, como quem perdeu alguém, pessoas que sofreram muito com a doença, ficaram com sequelas, mesmo que sejam pessoas que a gente nunca tenha visto na vida.”
Foi em março de 2020 que a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia de covid-19. Já se passaram mais de dois anos e mais de 600 mil mortes foram registradas no país, que enfrenta uma grave crise econômica e social. Nos últimos meses, o país lamentou a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na região da Amazônia, além de se revoltar contra a decisão de uma juíza que impediu uma menina de 11 anos de fazer um aborto.
O clima no Brasil é de luto. “Não dá para dizer que está tudo bem”, diz a psicóloga Maria Júlia Kovács. Professora livre docente no Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), Kovács tem o luto, a morte e a bioética como objetos de estudo há três décadas, foi coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da mesma universidade, onde também criou a disciplina de psicologia da morte.
Em entrevista à ComCiência, a especialista comenta o luto coletivo que paira sobre o país e elucida o que caracteriza este processo de forma individual. Leia a seguir a íntegra da entrevista:
ComCiência: Como a gente pode definir o que é luto?
Maria Júlia Kovács: O luto é um processo típico de elaboração diante de uma perda significativa, como a perda de uma pessoa. Hoje, se considera também a perda de um bicho de estimação e se considera um luto a perda de uma situação de vida, como o adoecimento ou a perda de um emprego que é muito importante, ou ter que sair da pátria, ou uma separação. São várias situações que não envolvem uma morte concreta, mas são vividos processos de luto.
O que caracteriza esses lutos que não envolvem a questão da morte?
É sobre a intensidade do problema, a intensidade da experiência vivida por cada pessoa. Por exemplo, você pode perder uma pessoa que eventualmente está muito doente ou numa circunstância difícil de vida, ou viver uma separação de uma figura amorosa que, mesmo não havendo morte, gera uma intensidade de sentimentos muito forte, a ponto de colocar a pessoa em grande sofrimento psíquico. O luto depende da pessoa enlutada, e depende também de quem é a pessoa, qual a situação perdida. Não dá para generalizar. A gente cuida começando a ouvir essa pessoa, como ela está vivendo essa experiência, como ela está passando por essa circunstância. Através da possibilidade de ouvir, de acolher, o outro começa a encontrar o seu rumo para continuar vivendo, porque às vezes a intensidade da dor é tanta que a pessoa acha que não vai conseguir viver a partir dessa perda tão significativa.
Quais são os sinais de que alguém está vivendo um luto?
Quem vai te falar isso é a pessoa enlutada e não nós, como terapeutas ou pessoas que cuidam, porque é ela que vai ter que encontrar o caminho dela. O luto pode ser cuidado por qualquer pessoa, não precisa ser um profissional da área de saúde, pode ser um familiar ou um amigo, e o cuidado implica no acolhimento, na empatia, em tentar identificar os sentimentos da pessoa. O enlutado fica profundamente envolvido com a perda que, de alguma forma, ameaça a vida. Você pensa: “como eu vou dar conta de continuar?”. Existe uma circunstância em que você pensa: “e agora?”. Não é uma situação em si, mas como a gente vive cada uma das situações.
Uma pessoa não vai ficar enlutada por conta da perda do emprego, por exemplo, não é a perda do emprego em si. Mas, para algumas pessoas, ser demitida é uma ameaça terrível que vai alterar profundamente a vida dela e isso caracteriza uma situação de luto. Adoecer, dando outro exemplo, faz parte da vida para algumas pessoas. Para outras, um diagnóstico de uma doença que ameaça a vida pode ser uma reviravolta total e elas não sabem como continuar, como dar conta. Não é o adoecimento em si, mas como ele é vivido.
Às vezes você perde uma pessoa da família, mas que não era tão próxima, você não entra em processo de luto, apesar de ser da sua família. Por outro lado, perder um colega pode ser muito mais doloroso. O grande problema, principalmente quando a gente tenta definir as coisas muito claramente, é que o ser humano não é claro e não é preciso.
Tem um meme que as pessoas postam na internet que é “saudades do que eu não vivi”. A gente pode viver um luto pelo que a gente não viveu?
Não, a gente só tem um luto pelo que a gente viveu. No caso de um aborto espontâneo, por exemplo, o casal viveu essa criança quando planejou um filho. A criança estava na barriga da mãe, eles viram no ultrassom, viveram essa experiência. Essa criança não nasceu, mas existe desde o momento em que ela foi pensada. É uma experiência vivida.
Qual a importância dos ritos de passagem para enfrentar o luto?
Os rituais ajudam porque dão sentido para o processo da perda. Eles são às vezes coletivos, podem envolver práticas espirituais ou não, são momentos de reflexão e troca com outras pessoas, da família ou amigos. São experiências que ajudam na construção do simplificado, porque a grande questão quando você perde alguém é: “E aí? Como vai ser a minha vida sem essa pessoa?”. No começo do processo fica difícil, mas os rituais ajudam a pensar como podemos integrar essa pessoa na nossa vida de outra maneira, não mais presencial, mas com festas em que lembramos de quem se foi, ou em pequenos rituais diários, como uma oração. São possibilidades de ajudar na elaboração.
É como se a relação se transformasse com a morte?
Isso. Ela se transforma. Quando você tem uma relação presencial, você tem um certo modo de estar com a pessoa. Quando ela não está mais viva, isso não quer dizer que ela vai desaparecer. Por isso que a melhor palavra não é “superar” uma morte, não é botar uma pedra, mas sim enfrentar.
A pandemia está nos fazendo enfrentar um período de luto coletivo?
Sim. O luto é um processo singular e próprio de cada pessoa, mas guerras, grandes desastres, naturais ou não, e a pandemia, que é uma grande crise sanitária e virou um desastre, atinge a todos. Nesse sentido, é coletivo sim. Dentro desse coletivo, temos nossas próprias formas de lidar com as circunstâncias. A pandemia não nos afetou igualmente, alguns de nós perdemos pessoas, outras não perderam ninguém por morte, mas perderam situações de vida significativas, como a casa, o emprego. Em um contexto como esse, a gente se comove com a situação de outras pessoas também, como quem perdeu alguém, pessoas que sofreram muito com a doença, ficaram com sequelas, mesmo que sejam pessoas que a gente nunca tenha visto na vida.
Estamos em um luto coletivo longo. Em 2020, achamos que seria uma quarentena de 15 dias, mas estamos caminhando para mais de dois anos de situações difíceis, com um presidente que fala coisas que nos deixam horrorizados. Tem várias circunstâncias que estão dentro do nosso viver, não dá para dizer que está tudo bem.
Em junho, a morte do Dom e do Bruno e caso da menina de 11 anos que teve o aborto negado repercutiram muito na imprensa, chocaram o país. Isso também gera uma espécie de luto?
Eu não conhecia o Dom e o Bruno, nunca tinha ouvido falar neles. Mas a situação nos deixa tristes, revoltados. São sentimentos que surgem quando a gente passa pela perda de uma pessoa que, para nós, é significativa. No caso dessas mortes, mostra também um projeto de desmonte do país. A violência que aconteceu com eles e que acontece com tantas outras pessoas nos afeta, porque envolve a destruição, mostra que existe uma necropolítica acontecendo, e pandemia é um exemplo disso. Houve demora para comprar vacinas, para determinar o uso de máscaras, era como se nada estivesse acontecendo. Morreram muito mais pessoas do que deveriam ter morrido no Brasil, muita gente não precisaria ter morrido. Temos uma desigualdade brutal, e isso nos machuca, nos magoa. Pessoas morreram porque não tinha oxigênio, não tinha vaga em UTI, não tinha vacina. Isso é revoltante e muito duro, machuca quem é sensível, quem tem empatia.
Como apaziguar esses sentimentos?
Não vamos sair dessa. Não é algo que se supera. Podemos nos organizar para enfrentar, sair às ruas, pensar em modos de driblar essa situação. Muitos psicólogos se organizaram para atender pessoas enlutadas online, por exemplo. Falamos muito sobre isso, orientamos funcionários de escolas, porque os jovens e crianças estão se matando. É muito importante voltar pro convívio, mas muitos jovens não estão dando conta, estão ansiosos e deprimidos.
Como se diferencia o luto de uma depressão?
Luto é um processo psíquico natural quando ocorre uma perda e você precisa se reorganizar, física e psiquicamente. É uma crise, e ela tem um tempo – que não é definido pelo tempo do calendário, por dias ou meses. A maior parte das pessoas enlutadas vai tocando a vida de alguma maneira. Isso não quer dizer que elas não tenham dias difíceis, mas ela vai tocando a vida.
Já a depressão é uma doença. O luto pode provocar um processo depressivo, mas não é todo processo de luto que leva a uma depressão. Tem que ter outras condições físicas e psíquicas. Muitas pessoas têm depressão, mas não estão em luto. Uma coisa não está diretamente vinculada à outra. A depressão tem a ver com transtornos de ânimo, um modo difícil de encarar a vida, não há disposição para viver. O que caracteriza a depressão é mais isso do que uma tristeza, que é um sentimento natural. A depressão é uma incompatibilidade, de alguma forma, com a vida. Se a pessoa tem um quadro depressivo, é muito difícil para ela o processo do luto. É como se ela não passasse pelo processo de luto, ela continua no processo depressivo.
Freud tem um texto interessante chamado “Luto e Melancolia”, em que ele fala sobre o luto como um processo psíquico e a melancolia como uma doença, em que você está o tempo todo centrado em você. Você não consegue fazer o seu processo de desligamento da pessoa querida. A depressão atrapalha o processo de luto.
Qual a maior dificuldade de estudar esse campo do conhecimento?
Quando você vai fazer pesquisa envolvendo pessoas em sofrimento, como enlutados ou pessoas com ideação suicida, pessoas doentes, essa pessoa já está em sofrimento, e você se pergunta: conversar sobre essa experiência vivida pode causar ainda mais sofrimento? Isso é uma preocupação. Existem termos de consentimento, comitês de ética para avaliar os projetos, mas isso tem que ser considerado. Mas, ao mesmo tempo, precisamos estudar esses processos, porque é a partir dos relatos que podemos pensar em formas de ajudar mais pessoas.
Letícia Naísa é jornalista, repórter do UOL, e estudante no curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp
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MARIA JÚLIA KOVÁCS FALA SOBRE MORTE E LUTO EM TEMPOS DE PANDEMIA.
A entrevistada fala sobre eutanásia, distanásia, mistanásia, ortotanásia, suicídio, luto, bioética e o ensino da morte na formação de profissionais da Saúde
Link:https://jornal.usp.br/atualidades/maria-julia-kovacs-fala-sobre-morte-e-luto-em-tempos-de-pandemia/
“É COMO UMA GUERRA, SÓ QUE COM CORPOS NA UTI, NAS VALAS COMUNS”
Como estamos lidando com o luto diante de tantas pessoas morrendo diariamente? Maria Júlia Kovács, especialista no tema, fala sobre como o contexto atual afetou nossa sensibilidade, o impossível retorno à normalidade e o que podemos esperar do pós-pandemia
Leonardo Neiva
Gama Revista
16 de Março de 2021
CORONAVÍRUS/LUTOMORTE/PSICOLOGIA
A pandemia, com seus milhares de falecimentos diários, está nos tornando menos sensíveis à morte e ao sofrimento? Além de um luto coletivo e constante, a necessidade de lidar com as próprias perdas e com as dos outros e uma quase banalização do tema no noticiário, as despedidas também ficaram mais complexas. Muitas pessoas hoje recebem a notícia do adoecimento de um familiar ou amigo pela covid-19 sem a possibilidade de visitá-lo no hospital ou, mesmo quando o pior acontece, comparecer presencialmente ao velório.
O processo de luto precisa ser abraçado e facilitado, em vez de impedido, como tem acontecido, em muitos casos, em meio à pandemia, diz a professora Maria Júlia Kovács, livre-docente do Instituto de Psicologia da USP. Segundo ela, quem perde um familiar ou uma pessoa próxima passa por um nível de sofrimento muito elevado. E, para realmente conseguir absorver essa perda, o processo do luto deveria ser essencial.
Kovács é fundadora e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM), da universidade, que realiza pesquisas e oferece cursos voltados para a psicologia da partida derradeira. A professora ainda compara a situação que vivemos hoje devido à covid-19 a uma longa guerrilha, daquelas que envolvem grande risco de morte e perda de entes queridos. “Apesar de esperarmos ter um ano mais tranquilo, de retomada, a realidade é que 2021 está muito pior no Brasil do que 2020. Isso também mina as forças, a resiliência, a possibilidade de lidar com uma crise”, declara.
Em entrevista a Gama, Kovács fala sobre como o contexto atual afetou nossa sensibilidade sobre a morte, a pressão negativa do “mimimi”, o impossível retorno à normalidade e o que podemos esperar do pós-pandemia.
“2021 está muito pior no Brasil do que 2020. Isso mina as forças, a resiliência, a possibilidade de lidar com uma crise”
G |Uma situação como a atual pandemia afeta a forma como enxergamos a morte?
Maria Júlia Kovács |Em psicologia não tem como falar de forma genérica porque as pessoas têm experiências e modos de enfrentamento diferentes. A pandemia é um evento de dimensões que ninguém no planeta Terra tinha vivido. Mesmo os que viveram a gripe espanhola hoje são muito poucos. Tivemos guerras, acidentes, mas nunca uma pandemia com tantos desdobramentos. Não existe ser humano que não tenha sido afetado. Buscamos formas variadas de enfrentar, algumas delas com consequências muito negativas, como toda essa situação que estamos vivendo hoje no país.
G |Dá para dizer que a situação é comparável à de uma guerra?
MJK |É muito semelhante, principalmente se a gente pensa em guerrilhas que levam muitos anos, em que as pessoas têm vivências muito graves todos os dias, com várias restrições e grande risco de morte, de perder pessoas significativas, o que está acontecendo agora. Apesar de esperarmos ter um ano mais tranquilo, de retomada, a realidade é que 2021 está muito pior no Brasil do que 2020. Isso também mina as forças, a resiliência, a possibilidade de lidar com uma crise. Alguns países já passaram por um momento como o que estamos vivendo agora, com o agravante de que estamos piores por não termos uma liderança coordenada, entre uma série de outros problemas.
G |Diferente de uma guerra ou de um acidente, na pandemia não há tantas informações visuais ou chocantes para confirmar as dimensões do estrago. Isso afeta a forma como percebemos o tamanho do problema?
MJK |Não é só uma questão de ver corpos. Os números de mortos são assombrosos e é muito difícil lidar com essa quantidade. É algo que o nosso cérebro e alma não conseguem processar direito. Sabemos que isso vai diminuir daqui a um tempo, mas é muito difícil organizar isso psicologicamente. Em vez de não estarmos vendo, estamos vendo demais. Os números são repetidos constantemente, a cada dia batemos um novo recorde, imagens mostram pessoas morrendo na fila sem atendimento. Isso é algo terrível, muito difícil de absorver. Principalmente porque não temos condição de fazer nada além de ficar em casa. É uma proteção, mas em nada alivia as condições de quem está morrendo. Essa é uma das coisas mais tristes. E não estamos sozinhos, é uma pandemia que alcançou o planeta inteiro. Essa é uma peculiaridade. É diferente de uma guerra, que atinge muita gente, mas não o mundo todo.
G |Temos tido também mais restrições na hora de enfrentar o processo do luto?
MJK |Uma coisa é ter um familiar com uma doença grave, mas cuja evolução você consegue acompanhar. Com a covid-19, muitos estão perdendo pessoas sem vê-las. Deixa no hospital e depois nunca mais tem contato. Isso é muito difícil. Estamos desgastados. Quando pensamos em ajudar outra pessoa, temos que lidar com o desânimo, a descrença. Esse é o trabalho de um profissional de saúde mental. Os profissionais estão cansados, principalmente os da linha de frente, que passam horas diariamente dentro de uma UTI, lutando para que as pessoas possam sobreviver ou ter ao menos alguma qualidade de vida. O luto é um processo muito importante para a percepção de perdas. Ele deveria ser facilitado, legitimado, ter um espaço de elaboração. Ele precisa de acolhida, de tempo. Não é uma situação simples. Aqueles que perdem pessoas próximas têm um nível de sofrimento muito maior, mas, mesmo que não seja o caso, existe um sentimento importante no ser humano que é a empatia e a solidariedade. Então eu sinto também pelas pessoas morrendo, por famílias enlutadas.
G |Existe um processo ideal de luto?
MJK |A psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross é uma das teóricas que mais trabalhou com a questão do sofrimento humano. Quando ela estabeleceu a ideia de etapas do luto, queria encontrar um modo de estarmos sensíveis ao que a pessoa sente. Infelizmente isso passou a ser usado como modelo, o que descaracteriza a obra dela e atrapalha, porque as pessoas acham que deveriam estar sentindo tal ou tal coisa. Não é por aí. A gente sente o que sente. E isso precisa ser valorizado como um modo de enfrentar a situação. Quando ouvimos que uma pessoa está triste ou até deprimida, e um governante diz que é “mimimi”, fraqueza, coisa de maricas, o mal que isso causa é de um tamanho incalculável. É isso que não devemos fazer: julgar, avaliar o sofrimento do outro como sendo de mais ou de menos.
G |Por que esse momento do luto é tão relevante?
MJK |Quando uma pessoa morre, essa é uma separação definitiva. Perdemos uma pessoa que nunca mais vamos encontrar. Só que não rompemos vínculos, porque temos memórias. Como a gente vai apagar uma mãe, um filho, um pai, um namorado, um amigo? Ele fica na lembrança, mas não temos mais esse contato, e isso dói muito. Nosso ser precisa se acostumar a continuar vivendo mesmo sem essa pessoa. Quando existe o agravante de uma morte com muito sofrimento, sem poder ter contato, se despedir, você agrega níveis de dor. Para algumas pessoas, pode se tornar insuportável. Sabemos que tem muita gente sofrendo, temos que nos preparar porque ainda há muito para fazer . Mesmo quando a pandemia acabar. Se bem que a pandemia não vai acabar, ela vai passar por etapas e a gente vai aprender a conviver com ela.
G |Quando você fala do pós-pandemia, se refere a um aumento nos problemas psicológicos?
MJK |Hoje existe uma expressão chamada covid longa. Ela se refere a pessoas que passaram pela covid, receberam alta, mas têm sequelas que vão perdurar por um tempo ou para sempre. Então teremos ainda questões físicas para serem cuidadas. A segunda coisa são as questões emocionais tanto dos que tiveram covid e ficaram com traumas como o processo de luta e perda, que também vai perdurar por um tempo. O luto é um processo normal, mas demanda energia psíquica porque você lembra da pessoa, guarda sentimentos que não foram elaborados para ela, uma série de coisas. Quando isso não pode ser cuidado ou é cuidado de forma precária, o risco de que o luto se torne mais difícil é grande. A partir disso, pode-se desenvolver uma doença como depressão ou transtorno bipolar. Se vivêssemos num mundo ideal, seria importante ter políticas de saúde mental que garantissem à população cuidados psicológicos sempre em organizações públicas. Não temos políticas públicas de luto, que eram fundamentais mesmo antes da pandemia. Se perco alguém muito importante para mim e preciso voltar a trabalhar, como dou conta? Isso precisa ser considerado seriamente, não como fraqueza.
G |A imensa quantidade de mortes acaba reduzindo a importância do sofrimento individual?
MJK |Temos vários mecanismos de defesa que nos protegem das coisas ruins. Saímos para trabalhar, fazer nossas atividades de lazer sem pensar que devemos morrer um dia. A gente vai tocando a vida. Na pandemia, isso também acontece. Até pouco tempo atrás, os velhos eram considerados grupo de risco. Agora eles estão protegidos e quem está entupindo as UTIs são pessoas de 30 a 50 anos, que têm um organismo melhor, mas passam muito mais tempo no hospital. É um paradoxo. A ideia de que comigo não vai acontecer cai por terra. E é uma das coisas que causam essa irresponsabilidade total e completa de pessoas se aglomerarem, não usarem máscara… Que mecanismo é esse que faz elas continuarem achando que são intocáveis? A grande loteria dessa doença é não saber quem vai pegar a forma grave. Existem velhos de 90 anos que sobrevivem e jovens de 25 que morrem. Como explicar isso? Não tem como apostar, e é isso que as pessoas não entenderam ainda.
G |Essas circunstâncias levam também a um aumento do negacionismo?
MJK |Precisamos analisar o comportamento humano nas mais diversas formas. Eu, por exemplo, acho que o lockdown acaba desembocando num efeito secundário importante que precisa ser levado em consideração: as pessoas não estão aguentando mais de um ano nesse vai e vem. Quem levou a ferro e fogo e não saiu de casa também está se infectando. Agora, se expor ao risco de maneira proposital é um absurdo. Estou cansada de ouvir que as pessoas ainda não entenderam o que é a pandemia. Entenderam sim. O que existe são pessoas de saco cheio, que não se importam de pegar a doença. Hoje estamos num ponto ainda mais restritivo, mas as festas continuam acontecendo e o transporte público está cheio de gente. Nesses pontos perdemos para os outros países: nos governantes e porque somos extremamente indisciplinados. Tanto que corremos o risco de ficar isolados do resto do mundo. Isso é muito grave. Nesse contexto, a pessoa precisa ter uma estrutura psíquica que permita entender tudo o que está acontecendo e ainda assim não se sentir fracassado, sem vontade. Nós que trabalhamos com isso também nos perguntamos: como vou poder ajudar outra pessoa se eu também me sinto mal? Precisamos encontrar em algum lugar dentro de nós mesmos o caminho.
G |O excesso de informações pode prejudicar nossa percepção?
MJK |As notícias negativas podem ser tóxicas e por isso não devem ser vistas em exagero, senão entram no cérebro e destroem sua vontade de viver. Uma coisa que também é discutida com muita frequência hoje em dia é a positividade tóxica. Você tem que estar bem, alegre, bonito, produzindo sempre. Um estado de epifania numa situação como essa que estamos vivendo. Só que o caminho do bem-estar não é esse. Se você está mal e precisa de um esforço sobre-humano para ficar bem, isso está errado. Então ter um equilíbrio entre notícias muito pesadas e a possibilidade de lidar com o dia a dia é muito importante.
G |Dá para dizer que perdemos um pouco da nossa sensibilidade em relação à morte?
MJK |Olha que coisa horrível o paradoxo. O índice de letalidade dessa doença é muito baixo se comparado com outras, como câncer. O que assusta, o que nos destrói é o número absoluto e também a forma como essa morte acontece. É como uma guerra, só que com corpos na UTI, nas valas comuns, em contêineres refrigerados, na rua… Mortes não são números, e sim pessoas, com as mais variadas características. Os ídolos recebem homenagens, mas os seres humanos comuns nem tanto. Por isso, todas as tentativas de transformar números em pessoas são muito importantes. É importante criar memoriais, como acontece quando há um acidente aéreo. No caso da Covid, um que registrasse esses mais de 260 mil mortos no Brasil. Ainda é um número pequeno em relação aos mais de 200 milhões de brasileiros, mas muito grande quando se pensa que ele representa três aviões lotados por dia. Nós não conseguimos processar esse número psiquicamente.
G |Como devemos lidar com esse impacto da pandemia nos próximos anos?
MJK |Desde que começou a pandemia as pessoas falam em voltar à normalidade. Primeiro que, em psicologia, normalidade é uma coisa complicada. E, nesse caso, não vamos voltar ao que era antes, mas a uma outra situação, à qual vamos ter que nos adaptar. Vai se constituir uma nova forma de viver. Com certeza muita coisa vai mudar. Por exemplo, eu sou professora universitária. Se, quando era jovem, tivesse que trabalhar à distância, não sei se teria tomado esse caminho. Acho o processo online possível, mas não é o meu sonho nem acho que equivale ao presencial. Eu sou velha, estou acostumada com outra forma de dar aula, de conversar, de rir junto. Fazer uma discussão em um grupo no Zoom guarda somente uma pálida semelhança com o que acontece na sala de aula. Tenho estado extremamente cansada mesmo trabalhando muito menos. Viagens e várias outras coisas que a gente fazia, vai ser tudo muito diferente… Mas vamos acabar nos ajustando, como já fizemos em outras ocasiões.
TERRAPLANISTAS, ANTIVACINAS: o que está por trás do negacionismo
Priscilla Auilo Haikal
Colaboração para o UOL/ VivaBem...
Resumo da notícia
- O negacionismo é uma tendência em larga escala, um movimento político que visa a negação tanto de fatos históricos quanto de evidências científicas.
- Tem como objetivo produzir nas pessoas uma espécie de ignorância, em uma situação social que inspira cuidado, tratamento e combate
- A insistência na negação como único mecanismo de defesa diante de um sofrimento intenso implica em vulnerabilidade psíquica que demanda acompanhamento
Afirmar que não, recusar a admitir ou a aceitar, contestar, repudiar, negar. São mecanismos comuns a todos, considerados inclusive como forma de defesa, muitas vezes inconsciente. Mas desde quando refutar um fato se tornou perigoso? Existem algumas explicações para tentar justificar esse comportamento de "ser do contra". Freud, por exemplo, defendia que era uma reação do "eu" diante de conteúdos que ameaçam a estabilidade da própria consciência. Também pode ser visto como um meio de escapar da realidade, por causa de sentimentos como medo e intimidação.
Tudo isso faz parte da negação, um conceito que trata sobre a atitude de reprimir aquilo que incomoda ou causa desconforto, normalmente por ser motivo de reprovação ou discriminação entre certos grupos sociais. Seria um jeito de "ganhar tempo" para enfrentar a impotência diante dessas sensações ruins, que, enquanto são negadas, também são sentidas.
Mas existe uma tendência em larga escala que se vale de métodos retóricos e argumentativos para negar eventos históricos e evidências científicas.
Com objetivo de criar tumulto e invalidar esses acontecimentos, estimula uma espécie de ignorância, que atende aos interesses daqueles que sustentam esse discurso. Nada mais é do que o negacionismo, disseminado para anular evidências já comprovadas (por vezes há mais de séculos), e que interfere nas crenças e nas formas de poder de quem as rejeitam.
Seja por ingenuidade, por ignorância ou maldade, é uma situação social danosa, que além de cuidado e tratamento, exige também combate.
A dificuldade em ter pensamentos racionais
Pessoas e sociedades cultivam opiniões, hábitos e costumes que são compartilhados.
Podem envolver práticas esportivas, culinárias, políticas, músicas ou religiões que são características daquele ambiente e daquela organização social e fazem parte do imaginário coletivo, bem como da identidade individual.
São elementos que nos apegamos afetivamente ao longo da nossa formação e que incluem também noções acerca do que é bem-visto ou aceitável pelos outros e, em consequência, por nós mesmos. Por mais que existam informações e processos que comprovem o prejuízo causado com essas ideias e posturas, é mais confortável ficar do lado das explicações que ouvimos desde cedo.
Para sair dessa lógica emotiva, é preciso treinar a mente para se tornar racional, uma tarefa difícil para os seres humanos. Uma prova disso é quando há um choque emocional ao entrar em contato com evidências que contradizem suas crenças. Ao invés de repensar essas noções, o indivíduo segue o chamado viés confirmatório, de sustentar as posições já existentes e ignorar as comprovações apresentadas.
Isso acontece principalmente com concepções profundamente arraigadas, normalmente construídas desde criança e que ganham caráter afetivo e emocional na mente. Desprezar ou não perceber as evidências de forma consciente é um comportamento bastante comum entre os negacionistas.
As diferentes razões que nos levam a negar.
Todo fato é dado pelo empirismo e existe concretamente, independentemente da nossa vontade. A Terra é redonda, o aquecimento global acontece e as vacinas funcionam, mesmo que algumas pessoas insistam em desconsiderar todos os indicativos científicos e históricos que provam esses eventos. São muitas as variáveis envolvidas nessas atitudes, a começar pela ingenuidade e pela dificuldade em desapegar de noções já acomodadas internamente. Se determinada ideia é confortável e justifica certos discursos ao confirmar o senso comum, esse indivíduo evita qualquer tipo de confrontação e se nega a acreditar em outras coisas.
A negação consistentemente sustentada pode ser também por ignorância, devido ao desconhecimento dos elementos envolvidos, o que leva a uma reação de recusa em admitir que não se sabe ou não entende de determinado assunto. Ainda há a possibilidade de essa postura ser por maldade, quando não se deseja concordar com pessoas ou grupos que se repudia, nem assumir que passou durante muito tempo acreditando numa mentira. Então, mesmo que haja condições de superar a ingenuidade, a ignorância, a pessoa prefere negar a evidência concreta.
De alguma forma, todos esses comportamentos são um jeito de manter a segurança pessoal e podem evoluir em tentativas de influenciar os outros para manter uma situação mais confortável frente a ameaças de ruptura ou mudanças. A insistência na negação como único modo de resguardo diante de um sofrimento intenso implica em vulnerabilidade psíquica e é uma situação clínica que inspira cuidado e tratamento.
Mas além do fator protetor, vale destacar que os mecanismos de defesa podem ter um caráter de perigo quando não se enxerga a realidade dos fatos. Sobretudo quando configura um movimento que ganha dimensões públicas, atingindo de modo perverso e manipulador pessoas mais vulneráveis (do ponto de vista psíquico e social), colocando-as em risco, sem que elas percebam que estão sendo enganadas.
Os males decorrentes do negacionismo.
Frente ao choque de uma realidade que o indivíduo não consegue dar conta, é natural que ocorram reações de negação para se adaptar, reestruturar e sobreviver emocionalmente a essa condição estranha, normalmente provocada por conteúdos que causam aversão. O ser humano constrói histórias o tempo todo e está sempre em busca de explicações para dar sentido à própria vivência. Por esse motivo é comum preferir discursos que oferecem conforto e reforçam a construção de mundo que não interfere em suas limitações em relação a preconceitos e desconhecimentos.
O problema é quando mentiras passam a ser usadas como argumentos válidos e colocam a vida de muitas pessoas em risco, a partir de teorias que desconsideram a gravidade de doenças, menosprezam a necessidade de medidas preventivas ou invalidam os recursos de proteção já existentes. O mesmo vale para teses que distorcem as origens das opressões ou que ignoram as desigualdades sociais, que resultam em violências físicas e emocionais contra certos grupos.
Essa corrente de enganação e negacionismo é danosa e deve ser combatida. Trata-se de um processo socialmente induzido, que visa a promoção deliberada da ignorância ou da incerteza na opinião pública acerca de determinado tópico, para favorecer os interesses daqueles que o disseminam. Inclusive é estudado pela chamada Agnotologia, área que analisa os fenômenos de produção política e cultural da desinformação.
Há ainda aqueles que são enganados e se encarregam de compartilhar o discurso negacionista, como forma de convencer a si mesmo e aos outros sobre coisas que desconhecem. Ao invés de uma reação humilde em assumir o desamparo que sentem pelas incertezas que os afligem, tratam o tema com arrogância e pedantismo, a ponto de negar evidências científicas. Isso praticamente impossibilita o diálogo e dificulta a ampliação e a diversificação do pensamento.
Por isso é fundamental estimular a reflexão e oferecer meios para a população desenvolver senso crítico. Ter contato com experiências, com a pluralidade de vieses, com a dúvida, a descoberta e a conclusão. Nisso tudo a representatividade importa e contribui bastante para não ficarmos restritos a apenas um ponto de vista. Consiste na convivência, na assimilação e no entendimento que existem diferentes realidades sociais, históricas e culturais. Para assim sermos capazes de analisar as informações e identificar quando se tratam de fatos ou fakes.
Fontes: Alberto Filgueiras, psicólogo e professor do Departamento de Cognição e Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro); Claudio Paixão, psicólogo e professor do Departamento de Teoria e Gestão da Informação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais); Maria Julia Kovács, professora livre docente sênior do IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) e membro fundador do LEM (Laboratório de Estudos Sobre a Morte); Maria Lívia Tourinho Moretto, professora titular do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do IPUSP.
COMOÇÃO OU LUTO COLETIVO? O QUE SENTIMOS COM NOTÍCIAS DE MORTES POR COVID?
Sibele Oliveira
Colaboração para o VivaBem
12/06/2020
As centenas de mortes causadas todos os dias pelo novo coronavírus mexem muito com a gente. Ficamos com o coração apertado quando vemos histórias rompidas abruptamente e acompanhamos a dor das famílias que não podem nem se despedir direito de seus entes queridos. Há quem defina esse sentimento compartilhado por pessoas mundo afora como luto. Mas será que é isso mesmo?.
Antes de nomear o que está se passando dentro de nós nesse momento, precisamos entender melhor o que é luto. Trata-se do processo de elaboração de uma perda significativa, que pode ser a morte de uma pessoa que amamos ou o fim de algo muito importante que faz parte das nossas vidas. Como por exemplo, uma doença grave que leva a saúde embora ou o término de um namoro, casamento ou amizade.
É o que muitas pessoas estão sentindo agora, tanto pelas mortes de pessoas próximas a elas quanto pelo isolamento e o impacto negativo na vida financeira. "O luto da pandemia envolve fatores além da perda de pessoas queridas. É a perda do nosso mundo normal, de atividades, de encontros", resume Maria Julia Kovács, professora e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo).
MAS E QUANDO A TRAGÉDIA NÃO ACONTECE CONOSCO?
Quando o rompimento severo de um vínculo, como a morte, envolve muita gente ao mesmo tempo, ocorre um luto coletivo. "As emoções são contagiosas, por isso se observa o efeito coletivo. Essa situação pode ajudar alguns, que passam a se sentir presentes na situação, acompanhados, compartilhando emoções, quebrando assim o isolamento", ressalta a psicóloga. Em outras palavras, a sensação de que todos estão no mesmo barco pode trazer algum consolo.
Luto coletivo é o que acontece após grandes enchentes, cujo saldo para os sobreviventes é a perda de familiares, amigos, casas e outros bens materiais ou de valor afetivo e sonhos. Ou em tragédias como o massacre na Escola Estadual Raul Brasil, o rompimento das barragens de Brumadinho, a queda do avião com os jogadores da Chapecoense, o incêndio da boate Kiss e do Ninho do Urubu. Também ocorre quando os grandes ídolos morrem, como o Ayrton Senna, o Ricardo Boechat e o Gugu.
Mas se já é difícil para cada um de nós entender exatamente o que sente ao ver as mortes em série provocadas pela covid-19, encontrar uma palavra para definir o que se passa dentro de milhões —ou bilhões — de pessoas é uma tarefa ainda mais complicada. Em geral, elas nos deixam comovidos e nos fazem pensar na finitude, na fragilidade da vida, nos nossos planos interrompidos e no mundo pós-pandemia, que é desconhecido.
A FORMA COMO SOFREMOS É INDIVIDUAL
Embora as reflexões e o pesar sejam amplificados pelo coletivo, não são generalizados. Até porque a realidade nos toca de maneiras distintas, com maior ou menor intensidade. Além de ficarmos condoídos pelas perdas humanas, somos invadidos pelo medo (por vários motivos), ansiedade, frustração, desamparo, revolta e outros sentimentos. "Alguns deles estão presentes ao mesmo tempo. Um caldeirão de emoções que podem ocorrer juntas, colocando em risco a saúde mental", diz Kovács.
Algumas pessoas sentem comoção - uma mistura de emoções fortes - e outras sofrem como se um pedaço delas tivesse sido arrancado. E há quem misture as duas coisas. "É possível ter comoção e luto ao mesmo tempo. Quando nos comovemos muito com uma situação, com uma história que ouvimos e isso desencadeia um processo de luto", explica Maria Helena Pereira Franco, professora de psicologia e coordenadora do laboratório de estudos sobre o luto da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
É a empatia que nos faz sentir tanto as perdas de pessoas que nem conhecemos. "Como a pandemia engendra um processo de luto pela perda da vida normal, ficamos muito sensíveis. E alguns de nós se solidarizam com o sofrimento dos que estão na UTI. Temos medo de que possa acontecer conosco o mesmo", destaca Kovács. Quanto mais grave for a situação, mais compaixão essas pessoas irão ter.
Mas há quem não se abale com a explosão de mortes e as imagens de desespero que vemos todos os dias. Existem possíveis explicações para isso. "As pessoas, em geral, têm dificuldade de entrar em contato com a sua dor. Por isso, algumas entram numa reação de negação. Fantasiam uma situação menor, menos importante do que é porque têm dificuldade de suportar a própria dor", sintetiza Franco. Outras simplesmente não têm empatia. Para elas, o esforço de se colocar no lugar do outro não vale a pena.
É PRECISO SE PROTEGER
Não é possível estimar a duração de um luto coletivo. "Não podemos medir em dias, meses ou anos. O luto é uma experiência que se manterá por toda a vida, em intensidades diferentes. Algumas pessoas não conseguirão elaborar as perdas e terão sofrimento excessivo, depressão e outros transtornos físicos e mentais. Outros poderão suportar melhor, adaptando-se à nova realidade", avalia Kovács.
As pessoas dentro do luto coletivo sofrem impactos diferentes, por isso a necessidade de cuidados precisa ser avaliada individualmente. "Vamos ter um período pós-pandemia com essa cicatriz. E não sabemos quando essa cicatriz vai fechar. Há um risco, talvez, de suicídios, de violência doméstica. A área da saúde mental será muito afetada", prevê Franco. Para alguns, essa cicatriz ficará aberta por muito tempo.
O desalento causado pela covid-19 é tão grande que muitos de nós já estamos ficamos doentes de estresse, tristeza e medo. "Para algumas pessoas, a angústia é maior e elas a expressam fisicamente. Então o aperto no coração, a sensação física é forte. Outras vão viver essa angústia na forma de uma dor de estômago ou uma insônia. É a linguagem que o corpo está usando para falar desse sofrimento", observa a psicóloga. Para nos protegermos desses males, devemos ter uma rotina saudável com fontes de alegria.
Não menos importante é cultivar a esperança, pois a desorganização interior provocada pela crise pode dar lugar a um novo equilíbrio. E fazer uma reflexão profunda. "Vai sobreviver a tudo isso quem tiver a capacidade de ressignificar seus sentimentos e relações. Quem tiver capacidade de doar amor, de perdoar, de esquecer coisas que não têm muito sentido, de deixar o orgulho e passar a dar valor às pessoas", conclui Melissa Couto, psicóloga especialista em emergências e desastres e fundadora da RAP (Rede de Apoio Psicossocial.
DICAS PARA SEGUIR EM FRENTE
- Evite ver só as notícias que mostram hospitais superlotados, mortes e o sofrimento dos doentes e familiares. Dê atenção às informações sobre curas, ações de solidariedade. Tome cuidado com as fake news.
- Procure ter uma rotina saudável. Ocupe o seu tempo com o trabalho e os cuidados da casa, faça exercícios físicos e de relaxamento e tenha momentos prazerosos como ouvir música ou ver filmes. Atividades virtuais em grupo também quebram a sensação de isolamento e desamparo.
- Mantenha-se em contato com amigos e familiares, seja por telefone, redes sociais e até conversas na varanda. Não opte por sofrer calado. Ter uma rede de apoio torna o momento menos pesado.
- Apegue-se à fé. Atividades religiosas e/ou espirituais nos fortalecem e ajudam a aliviar o sofrimento. Reuniões e cultos virtuais são uma boa opção nesse momento.
- Busque atendimento psicológico online, individual ou em grupo. Precisar de ajuda numa hora dessas não é fraqueza nem motivo de vergonha. Tome medicamentos, se for preciso.
- Lembre-se de que essa crise aguda vai passar. Então será possível retomar a vida de antes. Talvez de forma diferente e até melhor.
EMERGÊNCIA EMOCIONAL
O luto é mais difícil para quem tem um vínculo direto com as vítimas, principalmente quando não há o velório para se despedir. Essa é uma experiência traumática que muitas vezes impede a pessoa de seguir em frente. Couto acompanha de perto a dor de quem perde entes queridos em grandes tragédias. Quando era psicóloga da Cruz Vermelha, ela atendeu sobreviventes e familiares das vítimas da Boate Kiss e de Brumadinho, além de ter atuado no desastre aéreo que matou os jogadores da Chapecoense,
Agora ela presta, junto com um grupo de cerca de 40 psicólogos atendimento presencial, por telefone e vídeo conferência a quem não está conseguindo suportar a angústia pelas mortes da covid-19, no interior do Rio Grande do Sul. A equipe de psicólogos da RAP também acompanha o trabalho de profissionais da saúde mental em estados onde o número de mortes é mais alto, como São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas e Pernambuco.
Couto afirma que em tragédias como a do novo coronavírus, os primeiros socorros psicológicos são eficazes para reduzir o sofrimento psíquico decorrente de um trauma. "Eles trazem um benefício pela intervenção precoce. Através deles, a pessoa pode acionar seus recursos internos, sua capacidade de resiliência para passar por esse processo dolorido de forma adequada. Podem reduzir significativamente o adoecimento de uma população que é assistida". Esse apoio emocional faz as pessoas se sentirem acolhidas, fortalecidas, calmas e esperançosas.
O TEMPO DO LUTO DA SOCIEDADE SERÁ MAIOR QUE O TEMPO DO CORONAVÍRUS
Por conta da pandemia, os rituais estão suspensos, e isso pode ser um problema. Não viver bem o luto pode resultar em ansiedades generalizadas e quadros depressivos.
Davi Rocha
05/31/2020 06:00am -03 | Updated junho 5, 2020
Boa noite. O Brasil atingiu a marca de mais de 27 mil mortos pelo novo coronavírus.” Mais de 27 mil mortos pode ser só um número em mais um texto de mais um telejornal sobre o novo coronavírus no Brasil, mas é muito mais do que isso.
São 27 mil vidas. 27 mil pessoas. Pelo menos 27 mil famílias com uma pessoa a menos para contar como foi o dia. Uma pessoa a menos na mesa na ceia de Natal. Um presente a menos no Dia das Mães e Dia dos Pais. Uma pessoa a menos para telefonar perguntando se está tudo bem.
Temos um país inteiro de luto. Se pensarmos em pais, mães, filhos, filhas, tios, tias, amigos, conhecidos, podemos multiplicar esse número por 4, 8, 10, 20, vamos a 100 mil, 200 mil, 500 mil pessoas vivas chorando essas mortes. Milhares, talvez milhões, de pessoas de luto.
Ninguém estava preparado para viver em um país, em um mundo inteiro, de luto.
O luto como conhecemos envolve uma série de rituais como um velório, um enterro, uma missa (ou outro evento religioso), que proporcionam a todos um tempo para se despedir... Para lembrar das coisas boas que a pessoa fez em vida, das histórias que as pessoas viveram juntas. Isso normalmente era feito ao lado de amigos, parentes e conhecidos, se abraçando, se consolando, chorando, todos juntos. Tudo isso está em suspenso por causa do novo coronavírus. Tudo isso faz muita falta.
“Os rituais são muito importantes no processo do luto, oferecendo um espaço de segurança, conforto e compartilhamento para lidar com uma crise muito intensa na vida das pessoas, que é a perda de pessoas significativas”, explica a professora Maria Julia Kovács, livre docente do Instituto de Psicologia da USP (Univesidade de São Paulo) e referência na pesquisa do luto no Brasil. “Os rituais ajudam a organizar a realidade num momento de crise intensa, como é agora.”
De acordo com os protocolos oficiais de saúde, essas cerimônias tiveram de passar por atualizações. Em São Paulo, a maior cidade do País, por exemplo, todos os velórios estão suspensos.
“Uma parte importante dos rituais é [para] poder estar com familiares e amigos em contato presencial com abraços e proximidade. Essa forma agora está impedida em razão do contágio, então velórios presenciais e também enterros estão limitados no número de pessoas. E agora vemos situação em que não há enterros individuais e sim valas comuns. O impacto tem sido relatado como muito difícil”, descreve Kovács.
A psicóloga e fundadora do instituto 4 Estações, Luciana Mazorra, especialista em atendimentos de perdas e luto, explica que a morte tem o poder de mudar o mundo em que vivemos:
“Quando a gente perde alguém querido, é como se a gente perdesse o mundo tal como a gente acreditava que ele e teremos de nos adaptar a um novo mundo e reconstruir de alguma forma esse mundo sem essa pessoa. E a gente demora um certo tempo para aceitar essa realidade, para aceitar que a pessoa não vai voltar.”
Com a covid-19 e as dificuldades nos processos de luto, nós estamos pulando etapas, perdendo oportunidades de termos consolos presenciais de parentes e amigos. E isso pode acarretar alguns problemas psicológicos. “São questões que a gente chama de fatores de risco para a elaboração do luto e como consequência dessa ausência: dificultar a aceitação da realidade da morte”, detalha Mazorra.
Fazer algum ritual, da melhor forma possível, é muito importante, ela explica. “Talvez um velório virtual, um ritual em algum lugar que tenha significado para a família quando possível, mesmo que na ausência do corpo. Tudo isso pode contribuir muito para o processo de luto. De acordo com a particularidade de cada um. Até as celebrações religiosas estão sendo feitas online. Eu tenho ouvido relatos de que não é a mesma coisa, mas as pessoas estão se sentindo amparadas.”
A psicóloga Mariana Bayer, cofundadora do Instituto Trilhar, especialista no atendimento psicológico em situações de perda e luto, sugere diversas possibilidades de novos tipos de rituais para os nossos tempos. Como exemplos, fazer uma oração, desenhar algo que lembre a pessoa que morreu, separar fotos antigas para relembrar momentos da história da pessoa, ouvir músicas.
“Por mais que eu não possa ir num velório, é muito importante ritualizar”, aconselha Bayer. Ela conta o caso de uma paciente que perdeu um grande amigo e enviou um bolo com flores para a família sentir o conforto dela nessa situação. “É algo simples e carinhoso, e as pessoas conseguem sentir o carinho. Mas não podemos esquecer que quando tudo isso passar ainda é tempo de estar junto. O luto demora mais tempo do que a gente está vivendo e, mesmo depois de meses, as pessoas precisam de carinho, afetos e cuidado.”
MEMORIAIS VIRTUAIS TENTAM DE ALGUMA FORMA LEMBRAR DOS QUE PERDERAM A VIDA PARA O CORONAVÍRUS
Desde o início da pandemia várias propostas estão surgindo para transformar as dezenas de milhares de números em histórias de pessoas, com nomes, sobrenomes, biografias, desejos, sonhos.
Um dos mais conhecidos é o Inumeráveis, criado pelo artista paulistano Edson Pavoni, que o descreveu como “uma iniciativa artística, poética e jornalística para contar as histórias de cada uma das pessoas que faleceu ou que vier a falecer vítima do coronavírus no Brasil”.
Algumas das histórias do projeto estão ganhando destaque semanalmente no Fantástico, da TV Globo, todos os domingos, com texto interpretado pelo elenco da emissora, o que traz um pouco de conforto e pode ajudar no luto das pessoas.
https://www.huffpostbrasil.com/entry/luto-sociedade-coronavirus_br_5ed055ecc5b657ff6c8041b4
Neste momento vivemos o tempo todo uma grande tragédia que começou e não tem hora para terminar.
Talvez o Brasil nunca esteve tão de luto por tantos dias seguidos. E ainda vamos ficar assim por muito tempo. A psicóloga Mariana Bayer, que foi voluntária no atendimento de familiares do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, em 2012, afirma que estamos vivendo em um momento que se assemelha com grandes catástrofes.
“São situações de crise e emergência, em que há muitas perdas ao mesmo tempo, claro que dentro da proporção de cada evento. Todo mundo fica de alguma forma enlutado”. Ela diz que a crise causada pela covid-19 se aproxima ainda mais do rompimento da barragem de Brumadinho.
“Na boate Kiss, os entes queridos puderam enterrar os seus mortos. E em Brumadinho as pessoas não puderam enterrar, tiveram muitos desaparecidos sem corpo. E isso é muito parecido com o que a gente está vivendo hoje, em que as pessoas não podem enterrar os seus entes queridos, não têm um ritual para participar”, compara.
Neste momento é muito importante estar próximo, mesmo sem estar perto fisicamente.
Não viver bem o luto pode resultar em sérios problemas psicológicos no futuro, inclusive com o desenvolvimento de quadros de ansiedades generalizadas, crises de pânico e até um quadro depressivo.
“Eu acredito que pode haver complicadores e que a gente vai sofrer as consequências de passar pelo luto junto com o processo de isolamento social. Até porque o luto não passa em 2, 3 ou 4 meses, é algo que demora mais. Mas também não podemos dizer que todo mundo que perde alguém agora vai sentir alguma coisa do tipo”, afirma Bayer.
Por tudo isso toda a sociedade deveria estar atenta ao luto e ao suporte a todos que estão sofrendo com uma perda, seja um familiar ou conhecido. ”É muito importante que o enlutado sinta que ele não está sozinho, nem solitário e que ele pode contar com sua rede para lidar com sua luta. A família precisa oferecer esse apoio porque ele é muito importante”, lembra Luciana Mazorra.
Porém, o luto é um processo muito particular, e algumas pessoas podem optar pelo silêncio neste momento. “A gente vai ter que respeitar também a individualidade de cada um. Mas é muito importante que a sociedade mantenha suporte social e, de alguma forma, nos fazendo presentes mesmo que respeitando a distância física.”
A psicóloga destaca também a importância de não estigmatizar quem tiver um parente morto pelo coronavírus. “No momento todos estamos com muito medo de adoecer e de perder familiares por covid-19, em maior ou menor grau. Então aquela pessoa que passou por isso é como se fosse a portadora da má notícia que eu não quero ouvir. Então, eu posso tender a isolá-la para não entrar em contato com o meu medo, com essa lembrança de ameaça de doença que todos estamos sentindo em algum grau.”
O novo normal e o luto coletivo
O coronavírus trouxe o que estamos chamando de “novo normal”, uma nova sociedade em que todos teremos de usar máscaras, lavar os produtos depois de chegar do supermercado e evitar contatos sociais. Porém, o que não estamos falando é que neste novo normal estamos todos de luto. Mesmo se você não tenha perdido um parente ou amigo próximo, ou conheça alguém que passou por isso.
“Estamos vivendo um momento de luto coletivo, de perdas — da liberdade de ir e vir, do contato com familiares, amigos —, toda a questão de estarmos isolados socialmente, a distância física. Isso nos leva a presenciar diversas perdas e além disso estamos convivendo com uma constante ameaça de adoecimento e de perder pessoas queridas. Esses fatores causam estresse.”
EXPLICA LUCIANA MAZORRA
A psicóloga Luciana Mazorra ainda destaca que as notícias de tantas mortes nos impactam, sim, de alguma forma. “Por mais que sejam pessoas que nós não conhecemos, estamos vendo nos jornais, entrando em contato com notícias de mortes de conhecidos, de pessoas mais distantes. Todo mundo no geral. Isso nos causa um impacto muito grande que a gente chama de luto coletivo, de uma vivência e uma perda vivida na comunidade de uma forma geral.”
Isso pode levar a uma ansiedade, causar estresse e atrapalhar diversos aspectos de nossa rotina. A professora Maria Julia Kovács destaca que em alguns casos é importante pensar na necessidade de ajuda profissional. “[Precisamos]Reconhecer também se a pessoa precisa de ajuda psicológica, medicamentosa e legitimar essa necessidade, não como fraqueza e sim como um direito, num momento em que as pessoas se sentem vulneráveis”, conclui.
PODCAST “Roteirices”do jornalista Carlos Alberto Jr.
Transcrição
FACES DE UMA PANDEMIA:
Quando modos de viver e de morrer entram em suspensão
Com a Profa. Dra. em psicologia - Elizabeth Avelino Rabelo.
Carlos – O que é o fenômeno da finitude?
Elizabeth – O meu tema de especialidade é o tema da morte. Desde pelo menos 2012, quando eu entrei no mestrado que me dedico, me debruço pra estudar sobre a finitude humana por diversas vias. Por exemplo: no mestrado a minha pesquisa foi aqui em Belo Horizonte. Eu investiguei como que os coveiros lidam com a morte.
Por que que eu fui até eles?
Porque eu fui me perguntando: Se esse tema de encarar a nossa própria morte, a nossa própria finitude é tão difícil pra nós, como é pra aqueles que enfrentam isso, estão diante disso todos os dias?
No doutorado, que eu fiz na USP, na Universidade de São Paulo, a minha pergunta foi outra: A pergunta foi em torno do suicídio. A minha questão foi: Se a gente vive em uma sociedade que nega a morte, que evita lidar com a própria finitude, como é que tem cada vez mais pessoas que provocam a própria morte? E pra respondê-la eu busquei cartas e bilhetes deixados por pessoas que se mataram que é uma possibilidade de ouvir essa experiência. Enfim, quando você me pergunta sobre o que seria a finitude, é uma maneira um pouco mais rebuscada pra falar do fato de que nós somos mortais. Pelo menos o nosso corpo biológico. Ele tem uma previsão de ser extinto. Um prazo de validade.
Carlos – Lógico que isso varia de pessoa pra pessoa, mas, qual é o momento que a gente começa a pensar seriamente na proximidade da morte?
Lógico que se você tem uma doença, um câncer, algo que não tem cura a relação muda totalmente. Mas se você tem uma trajetória mais normal: você vai, cresce e vai envelhecendo e chega alí em 75/ 76 anos, que é a média de vida do brasileiro. Como é que as pessoas começam a lidar com essa proximidade dessa finitude? Você se dedica também a esse tipo de pesquisa?
Elizabeth – Não nessa via específica, mas eu posso fazer alguns comentários sobre isso e dizer que você é até muito otimista quando diz que vai chegando aos 75 anos e pode começar a pensar... Às vezes pra algumas pessoas isso começa muito cedo. Digamos que há duas vias por meio de acontecimentos da vida pra gente ser lançado pra esse fato de que nós morremos. De que nós somos mortais. Uma delas é a morte de uma pessoa muito próxima e muito querida a nós. Não tem necessariamente um vínculo que vai definir ou determinar quando a gente experimenta isso. Pode ser pais, avós, amigos, cônjuges, enfim, qualquer pessoa que tenha uma significância muito alta. Então a gente perde essa pessoa, por mais saudável fisicamente que a gente pode ser, a gente é lançado pra esse problema que eu estou chamando de problema porque isso nos angustia: sermos mortais e o fato de que os outros que amamos também morrem. A outra via é quando a gente enfrenta alguma doença. Por exemplo o câncer. E isso pode acontecer até em crianças. Um dos lugares onde tem uma intensidade peculiar é o hospital de câncer infantil tem uma intensidade. Parece ser uma inversão, parece ser algo completamente antinatural que crianças morram. Não tem necessariamente um ponto no desenvolvimento humano onde essa questão aparece; tem uma máxima que é bem da psicologia existencial que é: “Assim que nascemos já estamos prontos pra morrer”. Ou seja: “Pra que se morra basta estar vivo.” Uma outra forma de se dizer e é um ditado antigo.
Carlos – Minha avó, inclusive, falava muito: “Meu filho, pra morrer basta tá vivo”.
Elizabeth – Essa é uma característica, é uma condição da nossa existência. Assim que nascemos estamos prontos pra morrer. Para a nossa mentalidade parece que o normal, o natural é que se morra só na velhice. Isso é uma visão otimista, digamos assim, porque seria talvez um mundo ideal ou não, não sei. É algo pra gente pensar junto.
Carlos – De certa forma é o curso natural da vida, principalmente se você tem pais, os dois pais, nem todo mundo tem essa possibilidade, e se você tem os avós... Eu por exemplo conheci os meus 4 avós e conheci 3 bisavós. Duas bisavós e um bisavô que morreu quando eu tinha uns 2 ou 3 anos. Eu tenho alguns flashs mas as bisavós morreram eu já era quase adulto. E os avós eu já era, já tinha quase 30 anos quando eles começaram a morrer e a última morreu no ano passado aos 99 anos. Então, eu tenho exatamente essa imagem de que a vida vai no seu curso, no seu andamento até os 70 e poucos, 80, 90 anos considerando a situação da minha família. Mas tem um irmão, também, que era um ano e meio mais novo que eu que morreu. Inclusive hoje, 22 de maio seria o aniversário dele. Faria 49 anos. Então, existe essa proximidade dessa vida abreviada. Foi um acidente de trânsito, não foi nenhuma doença, então foi uma fatalidade que interrompeu aquela jornada.
Elizabeth – E qual é o nome dele?
Carlos – Marcio. Ele morreu em 2013.
Elizabeth – Eu tô perguntando porque já que hoje coincide com o aniversário dele, que a gente possa dedicar essa memória aos mortos que é algo tão importante e tão decisivo também pra nossa humanidade: lembrar os nossos mortos. Os nossos queridos que já não estão na mesma vida que nós.
Carlos – Curioso porque a trajetória dele tem a ver um pouco com isso que a gente conversou, de você ter pais e avós, né? No caso dele, quando morreu ele tinha um filho adulto, uma filha pré adolescente e um filho com apenas 3 meses de idade. Cê vê como é perceptível como essa perda vai impactar cada um deles, impactou e tem impactado de forma diferente, né?
Elizabeth – Sim, ainda mais com acidente, né? Que não tem nenhuma notícia prévia. Por exemplo, mesmo quando um paciente que seja mais jovem recebe um diagnóstico de câncer há todo um tempo de assimilação daquilo. Claro que é muito doloroso, é muito difícil, mas vem em pequenos anúncios, de tempos em tempos e isso de certa forma é uma maneira diferente.
Carlos – Alertas, né?
Elizabeth – É, alertas. Mas quando uma pessoa jovem, ainda, morre por acidente sem nenhum alerta o choque é muito maior. O luto é bem peculiar.
Carlos – Eu queria voltar um pouquinho em algo que você falou no início. Depois a gente desenvolve mais os temas até chegar esse momento da pandemia. Como ela se encaixa em toda essa questão. Você falou que a sua pesquisa do mestrado era sobre a relação dos coveiros com a morte, né? E que você fez uma pergunta pra eles: Como é que era lidar com essa questão da morte? Do luto das pessoas? Mas eu queria saber qual foi a resposta deles. O que você descobriu na pesquisa?
Elizabeth – Então, eu não cheguei a fazer essa pergunta diretamente.
Carlos – É um tema, né?
Elizabeth – Sim, como eu sigo uma vertente fenomenológica, a nossa intenção, antes de tudo, é compreender a vivência. Não necessariamente o que a pessoa pensa sobre a morte, porque isso desligá-la da vivência para ela racionalizar aquilo que está fazendo, e isso às vezes perde algo que é do imediato. Então eu fui com a intenção de acompanhar a rotina de trabalho deles. Eu chegava cedo ao cemitério, e ia acompanhando eles fazendo os enterros, as exumações. E eu fazia perguntas gerais como: Qual é a primeira coisa que eles faziam quando chegavam ao cemitério? Pedia a eles pra me relatar qual o enterro que ficou mais marcado, se tiveram vontade de chorar em alguma ocasião... Eu perguntei, se eles já levaram algum susto no cemitério. Perguntei se eles já tiveram vontade de rir em alguma situação e eles não podiam? Entende? Com essas perguntas, a minha intenção é de pegar, ali, como eles estão presentes dentro do cemitério. E com as respostas que eles me deram, foi possível ver que ali pra eles se tornou um ambiente familiar. Os coveiros que eu entrevistei, eles já estavam trabalhando em cemitérios há mais de 30 anos. Inclusive teve uma época que ele morou no cemitério. Então, é assim, é como se eles tivessem adotado aquele lugar como parte da casa deles. Um deles, o mais velho, ele tinha 71 anos na época e ele me contou que ele já tinha trabalhado 30 anos em cemitério, funerária, e que ele aposentou, ficou um ano em casa mas sentiu falta e foi procurar de novo o mesmo trabalho porque ele sentia falta de estar ali. Não por acaso era um dos coveiros que mais dominava essa relação com a morte. Não que ele não tivesse medo, não se emocionasse porque ele contava altas histórias. Um deles, por exemplo, disse algo que eu acho que é bem a marca deles, que é do tipo: “Alguém tem que fazer esse trabalho e nós damos conta e estamos aqui prontos pra o der e pro que vier.” Enfim, foi um resultado bem interessante pra mim.
Carlos – Mas você diria que essa frase dele resume de certa forma teu levantamento e daria pra dizer que é a marca da relação que se estabelece entre esses profissionais e essa dor toda que ele têm que vivenciar diariamente, porque, imagino lógico que você vai encontrar diversas situações: vai ter momentos de muita tristeza, mas eu já ouvi, também, muitos relatos de que em velórios, enterros, as pessoas cantam, batem palmas, há vários tipos de homenagens. Você encontra várias situações. Eu até me lembro que uma vez eu li uma nota, não sei se foi na coluna do Anselmo Góis, no Globo. No Rio de Janeiro tem um bar muito tradicional chamado Jobi. E foi até presenciado por um amigo meu. Ele tava lá tomando um chopp e tinha um grupo de pessoas. Todo mundo carregava... depois ele percebeu, era uma urna que passava de pessoa em pessoa e um fazia um pequeno discurso, levantava um brinde, e aquela urna, na verdade, eram as cinzas do amigo deles e o último desejo era que depois dele ter passado pelo ritual que as cinzas fossem levadas pro Jobi, que era o bar que ele frequentava, como se fosse a despedida. O último chopp dele com os amigos.
Elizabeth – Sim, bem bacana. Então, eu posso dizer isso considerando os coveiros que eu pesquisei aqui em Belo Horizonte. Em comparação com outras pesquisas, é possível encontrar algumas semelhanças, mas algumas diferenças também. Por exemplo, uma das semelhanças é essa disponibilidade tanto física quanto psíquica que eles precisam ter pra executar esse trabalho. E se o coveiro chega e ele não dá conta, ele não fica. Ele vai pra outro trabalho. Eu entrevistei coveiros que já estavam nessa profissão por volta de 20 anos. Foram aqueles que chegaram, sentiram uma vocação e continuaram. Pra esses que ficam, dá pra dizer algo no sentido de que eles conseguiram aderir à essa exigência. Eles se tornam organizadores desse momento. Uma das coisas que eu ouvi deles, é algo que a gente, de início, nem imaginava que eles tivessem uma sensibilidade assim, e que não foi ensinada por ninguém. Eles que, por observação e experiência desenvolveram essa sensibilidade. Um deles me dizia que, pra fazer esse trabalho precisa de uma sabedoria. E aí eu perguntei: Que sabedoria é essa? E aí ele foi me dizendo:
“Quando você chega pra fechar o caixão, é o momento mais difícil. Então, você tem que chegar, pegar a tampa e espera. Porque nesse momento os entes, os familiares vão se despedir e aí você tem que esperar. Porque ali eles vão chorar, eles vão fazer aquela despedida. Então, você não pode chegar, pegar a tampa e logo fechar. Tem que esperar. E só então, quando eles tiram a mão de cima da pessoa que está no caixão, aí eles estão autorizando. Então, quando eles tiram a mão é o momento que você vai e fecha.”
Não tem um curso de coveiro. É a sensibilidade que eles desenvolvem. E, curiosamente, foi um dos momentos que eu achei mais bonito da minha defesa de mestrado: uma das professoras que estavam na banca, quando ela leu essa descrição, isso evocou nela o enterro da mãe. Ela não tinha se dado conta que o coveiro que foi fazer isso de fechar o caixão, que ele teve esse cuidado com ela. E ela lembrou disso quando estava lendo a minha dissertação. Ela disse que o rosto desse coveiro, nunca mais saiu da mente dela e só ao ler a minha dissertação que ela se deu conta. Disse: “Nossa, ele estava me esperando. Ele viu que eu estava chorando, me despedindo e o olhar dele ia pra mim, me esperando sair pra então fechar o caixão.
Carlos – Esperando o sinal de autorização.
Elizabeth - Isso. Então, enfim, é o tipo de coisa que dá pra gente perceber que nesse momento que é extremamente caótico, que é o da morte, que é o da despedida de quem a gente ama tem esses profissionais que são muito invisíveis socialmente, mas eles tem outro tipo de invisibilidade que é extremamente nobre porque eles cuidam, eles dão uma organização pra esse momento e raramente são percebidos. Eles entram ali de uma maneira tão cuidadosa pra organizar isso, que eles nem são percebidos. Enfim, tem essa característica que dá pra gente ver que é da profissão. Que é uma exigência da profissão.
Carlos – Bom, você acompanhou muitos velórios e enterros. Então, eu queria lhe perguntar: E você? Como é que você reagiu? Lógico que você estava ali como pesquisadora, como acadêmica numa posição de observadora... mas você se emocionou também? Como é que essa experiência toda te afetou?
Elizabeth - Ah, com toda a certeza. Uma das coisas que me moveu a pesquisar o tema da morte, foi uma curiosidade pra entender qual a necessidade de um rito como o do velório. Pra que guardar uma imagem como essa, da pessoa falecida dentro de um caixão? Por que isso tem uma importância.? E meus pais, de origem mineira, do interior, têm uma proximidade muito grande com esses ritos. Uma das minhas primeiras memórias de infância é de estar em velórios na casa dos outros. E eu sempre olhava e dizia: “Mas que coisa mais estranha... por que isso?” Isso me levou a pesquisar sobre esse tema. Uma das coisas, né? E aí, nesse tempo em que eu ficava ali acompanhando esses enterros, e exumações também, que eu achava muito impactante, você ver o que resta da gente, depois de um tempo, isso com certeza empurra a gente pra altas reflexões: O que eu estou fazendo da minha vida? Me liga também à experiência de perda de pessoas queridas. Durante esse período do mestrado, eu perdi um professor que era muito caro, o professor Louis. E eu fui para o cemitério enfrentar o luto pela morte dele. E de repente pra mim, tinha essa questão de a cada vez estar diante daquela despedida. Eu vi enterro de pessoas mais jovens e pessoas mais velhas, são comoções distintas, mas fortes, que levam à essas duas coisas: lembrar da despedida daqueles que amamos e nos lançar pra essa questão existencial: olha, o tempo está passando, o que eu estou fazendo da minha vida?
Carlos – Eu queria que você falasse um pouquinho sobre o momento do luto que é talvez algo sagrado, não vou dizer em todas mas em grande número de culturas e sociedades. Você tem aqueles relatos inclusive que, em situações de guerra havia aquele momento em que se estabelecia uma trégua para que os exércitos, os dois exércitos pudessem recolher os seus mortos e realizar um ritual fúnebre adequado e no dia seguinte retomava a batalha, né? O que você pode falar da questão do luto na nossa sociedade. Qual é a importância? O luto também é o momento de despedida, como é que você vai lidar com aquela perda, aquela pessoa que não mais estará fisicamente presente com a família, com os amigos... aí depois eu vou puxar pra questão de como é que a gente lida com isso durante a pandemia. Mas primeiro, se você puder dar primeiro uma... brevemente sobre o que é essa questão do luto. Como é que ela se impõe na nossa vida.
Elizabeth - Interessante, né, eu tô ouvindo você dizer sobre essa coisa de ter uma trégua na guerra pra enterrar os mortos e a primeira coisa que me vem à mente que essa é uma questão básica naquilo que nos confere humanidade. Tô lembrando de alguns textos antropológicos que eu li em que um dos marcos pra localizar quando a vida humana, quando a espécie humana começou a aparecer na terra é justamente a existência de sepulturas, de covas. Ou seja, é justamente o ato de enterrar os mortos. Eles têm registro disso, por exemplo até de encontrar pólen de flores. Não enterram de qualquer jeito. Mas até esses cuidados, colocar flores ali, né?... Então, olha só, esse é um marco antigo pra nos conferir a característica de humanos. A trégua tem a ver com o resgate disso. De algo que é básico: o hábito de enterrar os nossos mortos.
Pra falar sobre luto, eu gosto muito de usar um filósofo, que pra mim foi um divisor de águas pra entender a vivência do luto. Não é um filósofo muito conhecido, eu não encontrei ainda nenhum acadêmico que seja leitor dele pra gente dialogar sobre isso, que é o Landsberg. Ele escreveu vários ensaios e aí, alguém da PUC Rio reuniu esses ensaios e montou o livro Ensaio sobre a experiência da morte e outros ensaios. E a história de vida dele eu acho que é decisivo pra ajudar a gente entender como é que ele foi tão feliz em descrever a experiência do luto. Ele é alemão e é contemporâneo à época do nazismo. Acabou sendo preso e morreu em um campo de concentração em 1941. E ele escreve, se não me engano, em 1936, o ensaio sobre a experiência da morte. O ponto de partida dele é se perguntar: É possível a gente viver a experiência da morte em primeira pessoa? Porque a ideia é que quando a gente morre, não estamos mais aqui e não tem como a gente fazer experiência do acontecimento da morte. E a pergunta dele é: “Haveria possibilidade da gente ter experiência da morte”? E ele responde essa questão dizendo que sim e que a via pra ter essa experiência da morte em primeira pessoa, é quando perdemos alguém que a gente ama. E ele explica assim: Há pessoas na nossa existência que a gente forma uma comunidade existencial. Essa pessoa passa a nos integrar e a gente passa a integrar esse outro de uma maneira tão forte que, quando ela morre é como se morresse uma parte da gente também. O processo do luto, na perspectiva dele, é justamente esse o desafio: alguém que configurava a minha existência morreu; agora eu preciso reconfigurar a minha vida sem a presença física dessa pessoa. Só que tudo vai me remeter a ela. Eu escuto relato de pessoas, que quando perde alguém querido, como um marido, que é muito difícil abrir o guarda-roupas e ver todas as roupas dele lá. O que faz com aquilo? O grande desafio colocado pelo luto é esse. Como é que eu reaprendo a viver com a ausência de alguém que me constitui e que vai continuar presente por todas as vias.
Carlos – Porque tudo lembra, né? O detalhe da casa, um lugar que vocês estiveram juntos. Tem até aquela música do Chico que foi gravada com a Zizi Possi que fala da morte de um filho. Arrumar as coisas do filho que já morreu. Até porque, a morte de um filho é exatamente uma inversão total... Eu gostaria que você falasse um pouquinho...: Como é que a religião se encaixa nessa questão do luto. Daria pra dizer que ela é uma forma de prolongar essa relação com a pessoa que morreu? Cê pega a história da humanidade, os rituais todos estão sempre presentes nessa conexão com o divino, com o plano superior. Isso seria uma forma de você lidar com a perda?
Elizabeth - Eu acho que tem um papel muito interessante e importante. Eu não me ligaria com o formato em si, como essa relação com os mortos, com quem já morreu, como isso é perpetuado. Se é por meio de psicografias, ou se é por meio de incorporações, ou de crença que existe uma vida após a morte. Isso são variações, pra mim, de segundo plano. O primeiro plano e que eu considero mais importante é que as religiões oferecem uma via de restaurar essa convivência com alguém que é significativo.
Carlos – Conforto?
Elizabeth- É, sim. Seja por meio da crença de que vai se reencontrar um dia, seja por meio dessa possibilidade da pessoa continuar se comunicando via psicografia... O ponto central, o ponto em comum de todas essas variações é que se oferece um caminho para que se mantenha vivo o vínculo com essa pessoa que morreu. Acho que esse é um movimento importantíssimo porque é muito significativo que a gente continue e permaneça conectados às pessoas que nos são caras mas de uma maneira saudável. E a religião tem uma via possível pra isso. Que não seja pelo tom de dor, de perda, mas seja por uma via de continuidade de uma relação que é significativa pra minha vida.
Carlos – Ontem eu recebi uma foto. Minha mãe mandou uma foto do meu irmão pelo WhatsApp, lembrando que hoje seria o aniversário dele, e com os dizeres “Saudades Eternas”. Botou o nome dele, a data de nascimento e aí eu até respondi: “Mãe, nunca vai esquecer, né?” Mas é como se ele estivesse em uma viagem e em algum dia a gente vai se encontrar que de certa forma, é um alívio também, né, um conforto pra você lidar com aquela data que marca um momento tão importante da vida das pessoas.
Elizabeth -E aí acho que vale à pena ressaltar também, que é importante a gente respeitar o tempo de cada um. Cada um tem um tempo particular pra elaborar o seu próprio luto. Quando morre alguém no meio familiar, cada um reage de um jeito. Cada um tem um tempo. Pode ser difícil ver a foto num primeiro momento. Isso precisa ser respeitado. No tempo de cada um, vai conseguindo assentar e assimilar tudo isso. Quando você me contou que ela te enviou a foto eu fiquei lembrando de pessoas que não conseguem nem conversar por um tempo. Tô aqui lembrando de um primo meu que perdeu a mãe, a minha tia, e ele dizendo que não conseguia nem conversar sobre ela. Que quando ele estava num ambiente e que as pessoas começavam a lembrar, a contar histórias, ele não conseguia ficar perto. Ele precisava sair. Isso tem um tempo que precisa ser respeitado.
Carlos – Agora eu queria puxar um pouquinho pra esse momento da pandemia. Por conta da pandemia as pessoas estão impedidas de ficar próximas de parentes, de amigos no momento da doença, não está tendo velório em muitos casos e as pessoas estão sendo enterradas, talvez, com uma pessoa da família, mas não está podendo haver aglomeração. Como é que as pessoas estão lidando com isso? É tudo muito recente, deve estar acontecendo ainda, não temos tempo de fazer um estudo mais aprofundado sobre o impacto que isso vai ter nas outras pessoas, mas o que já é possível depreender desse momento, como essa pandemia vai impactar a vida das pessoas. Se é que dá pra dizer, uma quantidade tão grande de mortos em tão pouco tempo. O que isso nos ensina qual é o impacto que isso vai ter em nossas vidas e como é que a gente vai sair dessa.
Elizabeth -Eu já vejo pessoas dizendo que a gente está tendo experiências que vai nos lançar em um trauma coletivo porque estamos diante de muitas mortes. A gente viu o que aconteceu no Equador, que eu acho que é um dos cenários mais terríveis, de ver corpos serem deixados na rua e de sentir aquele odor de decomposição, e tal... e toda essa questão dos rituais habituais estarem sendo impedidos. Isso tudo são complicadores pro processo de luto e que nos leva à uma experiência de trauma, de trauma coletivo. Só pra fazer um parêntese, qual é a nobreza do rito? Qual é a importância dele? A morte é algo inevitável. Nós vamos morrer. É um acontecimento que nos advém sem que a gente, à princípio, queira.
Como é algo que nos advém, que nos torna passivos, não tem o que ser feito, o rito é uma forma da gente fazer algo, ter uma atividade, uma ação, pra tornar mais suportável aquilo que nos advém de fora. Quando a gente perde essa possibilidade de agir, de ter algo que nos ajude a reorganizar tudo, e esse é um dos papéis de um ritual como o velório, de fazer algo com que nos acontece, isso torna o processo de luto mais complicado porque está sendo duplamente, tanto a morte quanto a pandemia se aliam pra nos tornar refém de algo que está nos acontecendo. Essa é uma das razões pra gente pensar que o processo de luto vai ser complicado.
Como é que a gente vai sair dessa? Eu até comentei com você sobre aquela crônica do Nelson Rodrigues que é de 1967, dele relatando o que viu na Gripe Espanhola de 1917/18. Eu tava lendo até um pouco mais sobre isso: ele tinha 6 anos no auge da pandemia e então escreve esse conto relatando o que viu ali. O que presenciou. E ele faz uma descrição muito potente, muito forte do que viu. De corpos acumulados na rua, deles sendo recolhidos e que, de início, as pessoas ainda ficavam sentidas pela morte dos seus, mas com o tempo, a morte foi se tornando banal e no fim ele acaba dizendo, e essa foi a parte mais impactante pra mim, que no fim tudo aquilo passou e no próximo carnaval estava todo mundo lá pulando como se nada tivesse acontecido. Então, quando você fala: o que a gente vai aprender com isso, se a gente olhar pra história o que aconteceu na Gripe Espanhola, nesse finalzinho, a gente vai dizer: olha, pode ser que a gente não aprenda nada. Pode ser que a gente esteja preso num círculo repetitivo e que não aprendamos as lições que essa situação nos lança não reveja aquilo que está sendo colocado pra nós e pode ser que tudo se repita daqui um tempo. Eu espero que não. Eu acho que uma das alternativas é que a gente olhe e veja e reveja aquilo que a pandemia está colocando pra gente. Por exemplo: a importância da ciência, como é importante investir em pesquisas, ciência, laboratórios, não só das áreas médicas, mas de todas. As áreas humanas também têm uma importância peculiar nisso, porque uma das questões que emerge forte é a desigualdade social, que a pandemia escancarou também. Eu vejo como alternativa àquele final que o Nelson Rodrigues escreveu da epidemia de 1917 é que a gente aprenda.
Carlos – O que você pode falar quando alguém deseja a morte de outro? Eu vou explicar: Quando morre alguém que é querido. Tanta gente má pra morrer e aí vai morrer uma pessoa boa. Vaso ruim não quebra, essas frases que a gente costuma ouvir que de uma certa forma a pessoa canaliza aquela dor ou aquela raiva pela situação: fulano é que deveria ter morrido... Político tal podia morrer... Aquele cara corrupto... O que isso fala da gente? Não sei se o termo correto seria uma banalização. E aí eu quero lembrar um vídeo que tava rolando na internet, eu vi outro dia, e aí você tem essas frases de algumas pessoas dizendo: “Ah, essa pandemia, vão morrer 6 mil pessoas, 7 mil pessoas, tudo bem, vai acontecer, a gente morre mesmo...” é uma banalização da morte. Esse vídeo que tá circulando aí, acho que foi um experimento que fizeram, perguntam pra uma pessoa: “Você acha que nessa pandemia, qual é o número? Tudo bem morrer quantas pessoas? 5 mil, 10 mil, 7 mil..”. Aí o entrevistado chega a esse número: 70 pessoas. “Então, como é que você vai escolher quem vai morrer?” “Ah, não sei.” “Então vamos fazer o seguinte: vamos trazer aqui 70 pessoas pra você dizer se essas pessoas podem morrer e você escolher quem é que fica, quem é que vai morrer”. Aí entram 70 pessoas e a fisionomia muda. Ele fica pálido. Aí ele fala: “Mas essas pessoas são a minha família”. Aí ele desmonta, e começa a chorar. Quando é próximo, não vale. Só vale pros outros, né? O que você pode avaliar disso?
Elizabeth – Eu vi esse vídeo. Acho que foi uma intervenção muito feliz de quem pensou nele e isso me lançou a uma angústia, por incrível que pareça. Porque eu comecei a pensar que a gente está num tempo... vamos pensar no momento político que a gente está no Brasil, isso tá fazendo emergir características nos brasileiros que a gente não imaginava que existia: de descaso com o outro, que tudo bem que morra 7 mil, é aceitável... Isso me fez pensar que tem 3 categorizações possíveis, diante da morte de outros. Ou seja, você disse duas, né? Bom, tudo bem quando morre alguém que é distante com quem eu não tenho vínculo nenhum. Então é aceitável que morra 7 mil. Ou seja, é uma indiferença. Tem essa segunda variação que é a desse vídeo que você trouxe: quando é alguém do meu vínculo, quando é alguém que tem essa significância, não é tudo bem. Eu vou chorar, eu vou sofrer, então isso me leva a outro patamar. Agora, me parece que há uma outra variação que é a de pessoas que não se importariam nem se fosse alguém da sua significância. Eu acho que a gente está enfrentando esse desafio de uma indiferença também até aqueles que podem nos ser caros. Ás vezes, por uma via de negação: “Não, mas morre mesmo.” Ou seja, eu já vi em alguns relatos de familiares que perdeu alguém nessa pandemia e que não aceita que foi por covid, acha que é por outra coisa, fala que são os profissionais de saúde que estão querendo forçar a barra, e tal. Mas também me parece que há uma outra variação, a de pessoas que não se importam que morram nem aqueles que são os seus. Por uma indiferença, por falta de empatia ou por adesão a outros valores, digamos, políticos, sei lá, que torna aquilo ali em: “ah, isso não é nada”, “pessoas morrem”. Mas é algo que eu comecei observar e eu não acharia justo falar: olha isso acontece e ponto. Mas é algo que me veio. Pode ser que tenha essa indiferença até diante daqueles que é do círculo de convivência.
Carlos – E o esse dilema ético, nem sei se o termo é exatamente esse. Principalmente os médicos que estão na linha de frente enfrentam isso: escolher entre quem vai morrer e quem vai viver. Quem vai ocupar o leito na UTI e quem vai ter que esperar e vai morrer. O idoso, já viveu a vida inteira... então ele, eticamente, ou se fosse um programa de computador, um algorítimo, um carro que se dirige sozinho e aí cê está na estrada aparecem 5 pessoas cruzando a estrada e o computador tem que decidir quem vai morrer; eu vou capotar o carro e matar a pessoa que está dentro porque é apenas uma pessoa que está no carro, ou eu vou atingir 5 pessoas que estão adiante de mim e, pra evitar 5 mortes é melhor matar a pessoa que está no carro. Como é que essas decisões são tomadas? Mas você sabe quem é. De repente a pessoa que está no carro é um criminoso, fugitivo e você tem 5 velhinhas... Ah, então é melhor matar a velhinha porque é mais velha e o cara é jovem ele pode se regenerar, digamos assim. Ou então, entre os 5 na estrada tem uma criança... Então é uma coisa muito complicada mas aí você vai escolher então o idoso, ele vai morrer. Mas de repente esse idoso é um médico, né? Que falta uma semana pra ele descobrir a cura do câncer e o teletransporte que vai mudar toda a humanidade. A criança vai crescer e se tornar um Hitler. Como é que você faz essas escolhas?
Elizabeth – A característica em comum de qualquer dilema ético é que não tem resposta, não tem saída boa. Dificilmente vai ter uma saída bonitinha, perfeita e que vai pacificar tudo. Tanto que, um dos símbolos pra gente exemplificar isso é a Escolha de Sofia que é aquele filme em que a mãe, na época do nazismo, ela é obrigada a escolher qual filho vive e qual filho morre. Então,não tem saída boa. Este é o primeiro ponto. O segundo, e aí eu penso até em termos da ética filosófica. Eu gosto muito da formulação de Aristóteles em relação à ética. Ele tem um posicionamento de que a melhor resposta ou a melhor saída é dada no momento e dentro da situação. Porque, por exemplo: a gente está vendo e acho que surgiu algo assim no Rio, não sei se foi pra frente, mas de pensar em protocolo, a priori, pra definir quem é que vai ser atendido ou não.
Isso é pouco, eu acho que não dá conta. E você trouxe questionamentos que nos faz pensar nisso: mas e se essa criança vira um Hitler e esse médico prestes a achar a cura do câncer... enfim. Isso que é desafiador, isso que é difícil porque quando a gente tem o protocolo, isso de certa forma suspende essas nossas dúvidas ou as tamponam: “Não, eu não vou precisar pensar isso a cada vez, eu não vou precisar me lançar a essa angústia da escolha de Sofia a cada vez...”
Calos – Você transfere a responsabilidade.
Elizabeth – Sim eu tampono elas e sigo esses protocolos. Isso dá um conforto. E é preciso a gente considerar que esses profissionais, não vão ter tempo pra sentar, fazer uma reunião de equipe... Vai ter uma exigência que a rotina do hospital pode não facilitar. Então, como fazer? Não tem resposta.
Calos – Isso me remete um pouco a essa questão do fuzilamento quando a pessoa é condenada à morte por fuzilamento e você tem os soldados, ou os carrascos que vão atirar mas nem todos têm balas de verdade que é um alívio pra pessoa que está executando aquela ordem. Ele nunca vai saber se a bala que matou a pessoa saiu da arma dele ou não.
Elizabeth – Acho que não tem resposta, né. Acho que é uma segunda característica para dilema ético. Primeiro que não tem saída boa, segundo que não tem uma resposta definitiva. Então, a cada vez, a cada experiência, minimamente nós vamos ser lançados a esses questionamentos pra ver o que que está dentro do possível a ser feito. E que a gente pode contar com o mínimo de danos possível, mas, enfim... sem resposta.
Carlos – A resposta vai se fazer no caminho quando chegar a um consenso em algum momento. Agora, o que você pode falar sobre comportamentos, por exemplo, de um líder como o presidente da república que ao longo de toda essa pandemia, e aí eu não quero politizar, entrar na questão de direita, esquerda, nada disso. Estamos avaliando como é que uma liderança no país, uma pessoa que foi eleita e tá lá no poder, faz piada quase que diariamente sobre a questão da pandemia, aquela questão lá, quem for de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína. Quando perguntam sobre as mortes ele responde: “E daí? O que que eu vou fazer”, numa clara demonstração de falta de empatia com a dor dos outros. E o papel do líder é exatamente esse de dar um certo aconchego: “Olha, estamos juntos nessa luta...” E a gente não vê nada. A única preocupação é aprovar a tal da cloroquina, e aí a mídia começa a divulgar: “Ah mas o fabricante de cloroquina é um empresário bolsonarista, que vai ganhar dinheiro...” Começa a insinuar que há outros interesses por trás, mas, a única preocupação que se vê é outra, né? É uma questão política, se os filhos vão ou não ser investigados pela polícia federal e quando se pergunta das mortes, né, ontem, mais de mil mortes outra vez, esse número só vai crescer e não há nada. Nem uma palavra de conforto, nenhuma palavra de preocupação, é só uma pressão pra abrir o comércio e já está comprovado que toda vez que abre 14 dias depois vai ter gente morrendo. O que é possível da gente avaliar sobre esse tipo de comportamento? Como é que alguém que está no maior cargo executivo do país pode influenciar negativamente as pessoas quando adota esse tipo de comportamento?
Elizabeth – Eu acho que um dos primeiros pontos a ser ressaltado e que a gente tem escutado por aí, na última live do Átila com Drauzio Varella isso foi ressaltado de novo como é lamentável e triste que uma pandemia seja politizada. Isso que você está dizendo que são questões de humanidade e que na figura de um líder de Estado isso deve estar numa escala de alto nível, né?
Carlos – Em outra dimensão.
Elizabeth – Em outra dimensão. Isso para os cidadãos comuns já tem uma exigência, mas pra um líder tem outro nível de importância. Como que isso vai pra segundo plano, e essa politização vai pro primeiro plano? Isso é lamentável e gera perda em todos os níveis. Inclusive uma perda no sentido de que a gente passa todo dia alimentando esse sentimento de indignação, de raiva... Meu Deus, olha, mais de mil mortos por dia e não temos essa figura que tenha esse cuidado de gerenciar o que está acontecendo. Isso nos lança pra um estado de... sei lá... de abandono, de orfandade porque é importante esse papel, né. Acho que outro ponto, decorre deste, é que o que a gente vê, é que não houve por parte do presidente essa adesão à figura ou talvez compreensão do que significa ser presidente de uma república.
Carlos – Do que é ser um líder, né? E você lidera pelo exemplo.
Elizabeth – Sim, eu já vi comentaristas dizendo que o presidente e todas as atividades que ele fez ao longo de sua carreira como militar, como deputado e agora como presidente, ele foi aquém daquilo se esperava ou do que é exigido para aquela atividade. A gente está vendo isso se repetir mais uma vez com ele na figura de líder. E a gente já ouviu isso na fala dele e na fala de alguns dos seus aliados, seguidores. Pra ele governar tem um significado próximo de favorecer aqueles que lhe são próximos ou que têm as mesmas ideias e pensamentos dele. Às vezes eu penso que ele acha que governar é isso: atender a demanda daqueles que pensam igual a ele.
Carlos – Pelos atos já deu pra perceber que ele não apenas acha como é o que ele pratica diariamente, né?
Elizabeth – Isso é a morte da democracia. Isso é a morte até de questões que eu tenho falado aqui que nos caracteriza como humanos, né? Eu não posso olhar pra aquele que pensa diferente e querer exterminá-lo ou exclui-lo das considerações da vida em comum. Então, quando a gente vê um líder... E isso enquanto humano, enquanto cidadão comum já é um problema enorme, quando a gente adere a essa postura de querer exterminar aquele que pensa diferente de mim , ou de não , considerá-lo como parte de uma sociedade comum em que convivemos. Isso quando é a característica de um líder, de um presidente, isso é catastrófico. E a gente sabe bem os resultados dessa catástrofe.
Carlos – Oh Elizabeth, você tinha mencionado também, no início, que a sua tese de doutorado foi sobre suicídio. Esse é um tema tão delicado e importante que eu já vou deixar o convite pra gente fazer outro episódio futuramente sobre isso que é um tema que me interessa muito. Recentemente teve o suicídio do ator Flavio Migliaccio e aí uma polêmica corre por conta da divulgação da carta dele, mas isso não dá pra gente falar rapidamente.
LUTO, MEDO E ANSIEDADE: O SOFRIMENTO PSICOLÓGICO NA PANDEMIA
João Paulo Charleaux13 de abril de 2020(atualizado 13/04/2020 às 00h47)
Livre docente do Instituto de Psicologia da USP, Maria Julia Kovács fala ao ‘Nexo’ sobre os impactos da crise em curso na saúde mental
Se as mortes por coronavírus podem ser contabilizadas, mapeadas, colocadas em gráficos e publicadas diariamente, o mesmo não acontece com um outro aspecto sanitário ligado à pandemia, mas muito menos visível: a saúde mental de toda a população mundial, que está submetida há meses a uma realidade com a qual ninguém está preparado para lidar.
A crise – inédita para toda uma geração, por uma combinação de variáveis que conjuga alcance, duração e letalidade – traz consigo medo e ansiedade em doses difíceis de serem administradas, ainda mais por pessoas que passaram a viver confinadas, sozinhas ou em família. À insegurança com a própria saúde e de pessoas próximas, soma-se ainda insegurança financeira.
Para muitos, a experiência é luto. A experiência da perda não se restringe apenas ao desaparecimento físico de uma pessoa próxima. O luto também é vivido na perda de um emprego, de um lugar, de uma vida tal como era conhecida.
Muitos desses processos de perda sequer podem ser acompanhados dos rituais propícios. A interdição ao contato social impede funerais e cerimônias religiosas, estendendo o dado da morte também aos que não podem chorar seus mortos e fechar um ciclo.
Nesta entrevista dada ao Nexo, por escrito, na quinta-feira (9), a psicóloga Maria Julia Kovács trata desse e de outros aspectos psíquicos da crise em curso. Ela, que é professora livre docente sênior do Instituto de Psicologia da USP, também enumera dicas que podem ser seguidas por todos os que tentam lidar com as consequências psicológicas da pandemia.
Qual a importância do luto e dos rituais fúnebres do ponto de vista psicológico?
MARIA JULIA KOVÁCS - O luto é o processo de elaboração de perdas significativas na vida – a morte de pessoas com as quais se mantêm vínculos. Mas ele ocorre também quando não ocorrem mortes. Por exemplo, em casos de separações, perdas de atividades significativas como as que ocorrem em relação ao trabalho, perda de saúde em casos de adoecimento, perdas ligadas à imigração quando se deixa a pátria fugindo em razão de guerras, ou em qualquer outra situação que traga uma mudança grande na vida.
A pandemia do covid-19 pode ser incluída nesse contexto porque traz consigo uma alteração significativa na vida das pessoas. Seja na vida dos que não estão doentes, seja na vida dos infectados e internados, dada a gravidade dos sintomas.
O luto é um processo natural do ser humano. Ele é uma forma de lidar com situações que ameaçam a vida e que trazem perdas significativas. Mas, mesmo sendo natural da existência humana, é ainda assim uma crise que promove forte desequilíbrio na vida cotidiana. É uma crise que desorganiza a vida e, portanto, requer cuidados de várias ordens. Não é uma doença, embora possa levar a sintomas físicos e psíquicos que precisam ser cuidados.
Os rituais são ações e atividades que ajudam a organizar esse processo de desequilíbrio presente em situações de adoecimento, de finalização da vida, da morte e pós-morte. Esses rituais têm valor simbólico para a pessoa, para uma família, para uma comunidade. Podem ser ações individuais ou coletivas, e sua importância está na construção de significado, na quebra do isolamento. É algo que pode trazer segurança. Os rituais são muito importantes porque permitem despedidas e formas de homenagear as pessoas perdidas, além de oferecerem conforto aos enlutados.
Qual o impacto de não poder despedir-se do corpo de um familiar quando o confinamento proíbe até mesmo os velórios?
MARIA JULIA KOVÀCS O impacto está sendo muito forte porque as despedidas são muito importantes quando se referem à perda de pessoas significativas. Ver e tocar o corpo, falar as últimas palavras, receber os familiares mais distantes, ter orações ou outros rituais de forma coletiva são coisas muito importantes. Há relatos das pessoas que não puderam estar presentes nos velórios, em razão do confinamento, e também de pessoas que tiveram de estar em velórios muito curtos, com caixão fechado, sem nenhum cerimonial. Isso é algo muito emocionante, que traz grande sofrimento.
O impacto dessas medidas é muito grande num momento em que as pessoas estão com medo, ansiosas e por vezes sem saber como foi a morte da pessoa querida, sem poder se despedir. Todas essas situações nos indicam que há grande risco de lutos complicados, com vários sintomas associados e com dificuldades também no oferecimento dos cuidados a essas pessoas que ficam. O luto complicado é algo que pode levar o enlutado ao adoecimento físico e psíquico, e também a suicídios.
Profissionais de saúde mental estão empenhados em pensar em formas de cuidados não presenciais, que possam amenizar esse sofrimento. Porém, como tudo é muito novo, há muito o que pensar. Grupos de psicólogos e psiquiatras têm oferecido cuidados online, individuais e em grupo. Mas esse é um conhecimento que está sendo construído.
Há países nos quais aproximadamente mil pessoas estão morrendo por dia. Isso é capaz de impactar a saúde mental da população?
MARIA JULIA KOVÁCS O impacto dessa pandemia é imenso e afeta a todos os seres humanos; alguns de forma muito intensa, principalmente os que são diretamente afetados pela perda de familiares ou amigos, além das pessoas que estão doentes e das pessoas que têm muito medo ou ansiedade em relação ao risco de se infectar.
Algumas pessoas tentam negar o que está acontecendo. Fazem isso como uma forma de proteção contra a ansiedade e o medo. O perigo dessa negação em situações extremas é o de coloca em risco a própria vida e a vida de outros.
Existe algum modo de estar melhor preparado para a morte – seja a própria morte ou de pessoas próximas?
MARIA JULIA KOVÁCS Não existe nenhuma forma padronizada de preparo para uma situação que ainda estamos conhecendo. Consideramos que a comunicação é muito importante em situações de crise e de desorganização, uma comunicação que ofereça informações e esclarecimentos, e que também ofereça possibilidades de acolhimento e de cuidados, que auxilie na busca de contato e de apoio em pessoas da família, em amigos e em profissionais da área de saúde mental; agora de forma virtual. É importante ter seu luto validado, reconhecido, e que os sentimentos possam ser expressos e acolhidos sem julgamentos críticas.
Todos esses pontos são importantes numa sociedade que ainda vê a morte como tabu, como um assunto que deve ser oculto.
Em tempos de pandemia, agregam-se agora outros pontos sobre os quais já falamos, como a impossibilidade de manter proximidade e contato, além de todas as dificuldades em relação aos rituais funerários que são tão importantes para a construção do sentido da vida sem a pessoa querida.
As pessoas têm medo de morrer com o tanto de sofrimento que é mostrado nas imagens de UTIs superlotadas. Elas têm medo também de não ter acesso a cuidados médicos ao adoecer.
Daí a importância do confinamento horizontal, que é difícil para todos. Preparar-se é viver essa situação, poder trocar informações e esclarecimentos, cuidar-se e buscar cuidados nas formas atuais, online, buscar, enfim, novas formas de viver essa situação.
É possível dar dicas de como sobreviver emocionalmente a essa pandemia?
MARIA JULIA KOVÁCS - Há atualmente várias publicações, cartilhas e guias para tentar amenizar o sofrimento mental, publicadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde), pelos Ministérios da Saúde dos países, por conselhos de psicologia, por associações médicas, universidades, ONGs, ente outras.
Entre os principais pontos abordados estão os seguintes:
Primeiro: não ficar vendo notícias, Whatsapp, Facebook e outros recursos o dia inteiro, inundando-se de más notícias. É preciso escolher um noticiário e limitar o tempo de contato com outras formas de comunicação. É preciso não se deixar inundar de notícias que, em vez de informar, levam à ansiedade e ao desamparo. Além disso, evitar as fake news.
Segundo: estabelecer uma rotina diária que tenha atividades de trabalho, atividades físicas, refeições, atividades de lazer dentro de casa, além de participar de atividades artísticas, atividades de autocuidado, como respiração, relaxamento, yoga etc.
Terceiro, estabelecer contatos pessoais diários com familiares e amigos por telefone, por Whatsapp, coisas com imagens, como Facetime e conversas em grupo. É preciso lembrar que só o contato presencial deve ser evitado, mas todas as outras formas de contato devem ser estimuladas.
Quarto, ser solidário, ajudar quem precisa e pedir ajuda quanto precisar. Essa pode ser um dos grandes aprendizados dessa pandemia.
Quinto, buscar ajuda psicológica – lembrando que isso não é fraqueza, não é vergonha. Atualmente, há várias ofertas de atendimento psicológico, muitas delas gratuitas por meio de ajuda telefônica, chats ou outras formas virtuais gratuitas. Sempre vale a pena indicar também o Centro de Valorização da Vida, que, no Brasil, tem o telefone 188. Outros conhecimentos de cuidados em saúde mental estão sendo elaborados.
Para as crianças, estão sendo elaborados livros e cartilhas com explicações e ilustrações que explicam o que é o covid-19, quais são as formas de contágio. São publicações que ajudam a lidar com o confinamento, com os sentimentos. Elas trazem também desenhos e atividades a serem realizadas.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2020/04/13/Luto-medo-e-ansiedade-o-sofrimento-psicol%C3%B3gico-na-pandemia
A QUEM PERTENCE O CORPO VELHO
Por Mariza Tavares
Jornalista, mestre em comunicação pela UFRJ e professora da PUC-RIO, Mariza escreve sobre como buscar uma maturidade prazerosa e cheia de vitalidade.
Geriatra e juíza, ambas doutoras em bioética, discutem o que é ter autonomia até o fim da vida
Rio de Janeiro
10/11/2019 06h00 Atualizado há 5 meses
Não uma palestra, e sim uma roda de conversa. A geriatra Claudia Burlá e a juíza Maria Aglaé Tedesco Vilardo criaram uma apresentação instigante, do começo ao fim, no GeriatRio 2019, que já foi objeto das colunas de terça e quinta-feira. “Meu corpo velho, minhas regras” era o título dessa quase “provocação”, já que o envelhecimento é pautado pelo processo da perda de identidade dos indivíduos. No entanto, em qualquer momento da trajetória de um ser humano, sua vontade deveria ser respeitada. A médica Claudia Burlá iniciou os trabalhos dizendo que o bate-papo seria baseado em três eixos: autonomia, capacidade decisória em relação aos cuidados na velhice e a possibilidade de descontinuar os tratamentos que estejam sendo feitos. Afirmou ter buscado inspiração na pintora Frida Kahlo, que morreu jovem, com apenas 47 anos, depois de suportar dores atrozes resultantes de uma poliomielite e de um grave acidente de trânsito.
“O nome Frida resume o que se relaciona ao processo de envelhecimento. O F é de funcionalidade, a potência do corpo que, com a velhice, vai decaindo e abrindo a guarda para que doenças ocorram e haja um declínio progressivo. O R é de resiliência, que implica aceitação e adaptação em relação às novas situações e restrições. O I é de insuficiência, quando se caminha para um quadro irreversível, com um dia a dia de limitações até a dependência total. O D é de dignidade, o desejo de todo ser humano e que pode ser comprometido ao longo da nossa jornada. Por fim, o A é de autonomia que, após a saúde plena, é o maior patrimônio que temos. Significa viver de acordo com minhas regras e meus valores. A demência é um processo que pode durar de dois a 20 anos, ceifando o entendimento da pessoa em relação ao que está acontecendo em seu entorno. É de uma perversidade terrível, porque tira do indivíduo a possibilidade de expressar o quer. Portanto, a grande questão é como garantir que sejamos atendidos em nossos desejos no fim da vida”, enfatizou a geriatra.
Da esquerda para a direita, a juíza Maria Aglaé Tedesco Vilardo, o geriatra Daniel Azevedo, mediador da conversa, e a médica Claudia Burlá — Foto: Mariza Tavares
Para uma plateia de profissionais da saúde, a juíza Maria Aglaé Vilardo fez questão de mostrar que temos leis – não uma, mas várias – que já dispõem sobre a questão, garantindo que a decisão seja da pessoa, e não de terceiros. “O Estatuto do idoso, em seu artigo 17º., é claro: ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável”, explicou. Se o idoso não estiver em condições de fazê-lo, essa função é do curador, no caso de curatela; em seguida, dos familiares, quando não houver curador ou este não puder ser contatado em tempo hábil; e depois ao médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador e familiar. “O médico vem em último lugar!”, ressaltou a juíza, que citou também o Código de Ética Médica (resolução número 2.217, de 2018): “o artigo 24 do Capítulo IV diz que é vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. A recusa terapêutica é um direito do paciente a ser respeitada pelos médicos e é importante afastar a cultura da judicialização. Inclusive, se o idoso está bem cuidado e protegido, não há razão para assoberbar o Judiciário com ações de curatela, mesmo com comprometimento cognitivo”.
Ela afirma entender o sentimento de solidão do médico na hora de tomar uma decisão associada à terminalidade da vida do paciente. Além do medo de errar, a maioria sente-se insegura em relação ao amparo da lei, mas sua apresentação foi justamente mostrando que esse respaldo existe. E mais: acrescentou que o Artigo 5º. da Constituição põe no mesmo patamar a inviolabilidade do direito à vida e da liberdade. As perguntas que todos devem se fazer são: você sempre tomará as decisões sobre o seu corpo? Ou prefere transferir para outra pessoa essas decisões, mesmo que isso possa representar um peso enorme para um ente querido? São questões incômodas porque nos lembram de nossa finitude, mas ignorá-las não mudará o destino que cabe a cada um de nós. Entretanto, uma diretiva antecipada de vontade pode fazer diferença: quando o corpo for velho, mas quisermos que nossas regras valham.
PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE A MORTE
Dos aspectos mais simples até as diretrizes sobre tratamentos médicos, tudo pode ser acertado previamente.
A psicóloga da USP Maria Julia Kovács: Infelizmente, poucas pessoas sabem que o paciente tem o direito de escolha (em seu final de vida)
Gustavo Carneiro - Grupo Folha
Ainda tabu para muitos, a morte é inevitável e por isso mesmo precisa fazer parte das conversas familiares, de assuntos práticos como doação de órgãos, sepultamento ou cremação até últimos desejos, partilhas de bens e um item ainda desconhecido de muitas pessoas, as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV). Espécie de lista de instruções sobre o que o paciente gostaria ou que não gostaria que fosse feito em seu tratamento, caso fique inconsciente, o documento não precisa ser registrado em cartório.
Docente do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) e membro do Laboratório de Estudos sobre a Morte, a psicóloga Maria Julia Kovacs esteve em Londrina no mês de março para participar do I Congresso de Direito das Famílias e Sucessões do Interior do Paraná, realizado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), com apoio da Subseção OAB-Londrina.
Para ela é fundamental que as famílias conversem sobre o assunto. “Acho que infelizmente poucas pessoas sabem sobre isso, que o paciente tem o direito de escolha, o que está fundamentado em o direito de escolha da pessoa em relação ao seu final da vida, e em relação aos processos.”
– As pessoas confundem morrer com dignidade e a eutanásia. Qual a diferença entre elas?
Morrer com dignidade é um conceito mais amplo que envolve uma série de questões e, inclusive, nos países onde é legalizada a eutanásia ou o suicídio assistido. Como no Brasil nenhuma das duas questões está legalizada, a ideia de morte com dignidade é a ideia de você ter uma morte sem sofrimento, sem tratamentos invasivos, e que você possa ir com calma, às vezes se possível em domicílio, com presença de pessoas importantes, sem recorrer à eutanásia ou suicídio assistido porque não temos aqui essa possibilidade.
– Em um artigo a senhora comenta que algumas pessoas têm medo de parar o tratamento médico e não ter acesso a cuidados. Ainda hoje, a senhora avalia que a situação continua dessa forma ou já melhorou?
A situação melhorou muito, mas as pessoas ainda confundem o fazer tudo com o tratamento na unidade de terapia intensiva (UTI), uma série de tratamentos invasivos. Principalmente o alívio da dor que é o problema mais sério no fim da vida e o problema respiratório podem ser feitos num quarto de hospital ou até mesmo em casa, com cuidados de home care, ou outra possibilidade, sem recorrer à tratamentos invasivos. Medicação que alivia a dor, que alivia desconforto, se a pessoa está fraca uma alimentação que pode ajudar nessa situação até a finalização da vida e em muitos casos também há um pedido que não se ressuscite a pessoa se, por exemplo, houver uma parada cardíaca.
– Muitos desses procedimentos são feitos para trazer mais conforto para os familiares do que para o próprio paciente, justamente por os familiares acharem que não estão preparados para aquela perda?
Os familiares são familiares, não sabem às vezes nem sobre a doença nem sobre os tratamentos, estão muito aflitos, querem que a pessoa viva, que ela não sofra. Então é muito importante acompanhar a família durante todo o processo de adoecimento. Isso é uma coisa importante. Os cuidados devem ser focados principalmente naquilo que o paciente precisa. Isso é muito importante mas sempre esclarecendo o paciente se ele estiver lúcido e a família, sempre, o tempo todo. Sem dúvida, há alguns tratamentos que talvez não fossem tão necessários para o paciente porque talvez ele não está mais consciente, ou nem sente tanto, mas são situações que podem deixar a família um pouco mais tranquila. Se isso não acarretar nenhum sofrimento a mais para o paciente, não for uma situação muito complicada, não há porque não fazer.
– Apesar de sermos latinos e termos a fama de sermos mais emotivos, ou justamente por isso, entre nós o falar sobre a morte é bem negligenciado. A senhora acredita que isso possa trazer grandes consequências?
Acho que quando estamos no âmbito da psicologia, é muito difícil falar genérico. Temos vários tipos de latinos: os latinos mesmo, os imigrantes, temos uma gama muito grande de pessoas. Em segundo, temos histórias de vida muito diferentes, famílias que lidam com a situação de um jeito, de outro, a questão da religiosidade, da espiritualidade tem um efeito grande também, então não dá para falar de uma maneira geral, embora a gente diga sim que os latinos são mais expansivos. Sobre a dificuldade de falar sobre a morte, ela existe desde a metade do século passado por causa de uma concepção errônea de que a medicina deveria evitar a morte, combater, o que está errado, não temos como combater a morte, temos que lidar com doenças e cuidar de pessoas. No tempo que venho estudando a questão acho que está se abrindo mais, hoje há possibilidade de falar sobre o assunto, as pessoas procuram lugares onde se fala, também na formação de profissionais de saúde, então está melhor do que estava. É um tema difícil e dentro desse tema alguns deles são mais difíceis: final de vida de uma pessoa, por exemplo, com o câncer, ou hoje, até mais complicado do que o câncer, pessoas com demência, doença de Alzheimer, que é uma forma de demência, porque aí muitas vezes a pessoa está saudável fisicamente mas quanto ao emocional e cognitivo, ela está muitas vezes, perturbada. É difícil porque como você vai falar de morte com uma pessoa que aparentemente está bem, saudável? Isso causa uma sobrecarga muito grande para os familiares.
– Como funcionam as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV)? Qualquer pessoa pode fazer? Qual o momento para isso?
As DAV são eventualmente conhecidas em outros países como testamento vital, quando a pessoa, além da distribuição dos bens, fala do que ela gostaria que acontecesse no final da vida dela, e depois da vida dela. Aqui no Brasil resolveu-se usar esse nome e seriam instruções ou vontades expressas pelas pessoas, antecipadas porque não serão no momento da morte, serão antes, a qualquer momento da vida. Elas dão essa possibilidade de a pessoa poder participar de uma forma mais ativa do seu final de vida, do que ela gostaria, do que ela não gostaria que se fizesse. Não tem uma idade certa, pode começar a qualquer idade, é um documento escrito mas pode ser também falado para alguma pessoa de confiança, que seja da família ou da equipe médica. O escrito parece que dá alguma consistência maior para essa situação. O Conselho Federal de Medicina propôs na Resolução 1995 de 2012 que esse documento seja válido como exercício de vontade e que deve ser respeitado, mesmo que a equipe considere que outros tratamentos sejam possíveis. A vontade do paciente prevalece sobre a vontade da família e dos profissionais. Hoje aquela ideia que o profissional seria processado porque não fez x, y, z tratamentos que deveria fazer porque tem o documento, não seria processado porque é um documento do Conselho. A turma do Direito tem um papel importante nessa questão, embora no Brasil as diretivas não sejam lei. Há países onde é lei. Em Portugal, por exemplo, a diretiva funciona e é ilegal você fazer um procedimento que não está colocado ali ou que está pedindo que não seja realizado. Muitos advogados acham que para ter mais consistência deveria ser registrado em cartório. Seja como for, acho que o mais importante é você poder conversar, se tem possibilidade, com o seu médico ou com algum médico que você eleja para isso, com os seus familiares. Fale sobre isso, converse e veja quem será a pessoa que pode te representar caso no momento talvez você não tenha mais consciência.
– Seria interessante antes de fazer esse documento conversar com um médico para saber quais os procedimentos que podem ser feitos em determinadas situações, para poder escolher com consciência o que eu quero ou não quero?
Exatamente, é muito importante poder conversar com um médico, inclusive ele pode orientar porque às vezes a gente põe como impedimento certos tratamentos, porque achamos que eles são muito ruins, mas eles podem ser importantes no momento em que ainda é possível alguma recuperação. Eles dizem que o documento deve ter muito mais princípios do que falar sobre tratamentos. É interessante colocar: “eu não quero que a minha vida seja prolongada se não houver possibilidade de recuperação”. Muitas vezes a pessoa diz que não quer ser entubada, mas a entubação poderia ser importante e a pessoa poderia ter uma boa recuperação. São nuances, por isso é interessante conversar com um médico e o documento é uma diretriz, um princípio, não é definitivo, tanto que você pode mudar a qualquer momento, principalmente se não tiver essa questão cartorial, pode fazer um novo documento a qualquer momento. O mais importante disso é a comunicação.
– Há algum impedimento para que a pessoa faça esse documento?
Esse é um ponto extremamente vulnerável. Há uma médica carioca, Cláudia Burlá, que faz um trabalho muito interessante com pessoas com doença de Alzheimer. Quando ela vê o diagnóstico, (se) a pessoa ainda tem possibilidade de consciência, de se manifestar, é muito importante orientar poder fazer (a DAV) porque a pessoa ainda poderá fazer aquilo que gostaria e talvez num momento mais para a frente não consiga fazer. Eu não sei do ponto de vista legal se tem algum impedimento, por exemplo, alguém que tenha doença mental. Do ponto de vista psicológico, uma pessoa que tenha doença mental tem possibilidade sim de falar sobre a própria vida, sobre o próprio sofrimento. Inclusive não tem ainda discussão sobre, por exemplo, pessoas que têm depressão, tentam suicídio, se elas podem escrever um documento dizendo que elas não querem ser salvas em uma tentativa, por exemplo. Normalmente todo esse processo é feito, se podemos chamar, com doenças de ordem física. Mas do ponto de vista psíquico sempre tem essa discussão, será que a pessoa tem competência mental, será que ela pode avaliar? É muito complicado.
– E como as famílias lidam com esse documento, ao descobrir de repente que o paciente não quer ser reanimado, por exemplo?
Eu acho que hoje todo o princípio está fundamentado na comunicação, na possibilidade que os familiares conversem sobre isso, pensem junto e o paciente ao fazer a diretiva, ou ele faz junto, ou ele avisa a família que fez, entrega uma cópia do documento para alguém da família que ele ache que seja alguém que pode representá-lo. Esse seria o ideal, mas muitas vezes não é assim que acontece, o documento está lá e se acontecer alguma coisa repentina, e a família não souber, esse documento pode ficar perdido. Outra coisa, talvez a família não concorde e aí, de novo, é uma questão de conversar: “eu quero, é a minha vida que está em jogo”. Poder ter essa negociação em vida enquanto as pessoas podem conversar, (é) melhor. Acho que infelizmente poucas pessoas sabem sobre isso, que o paciente tem o direito de escolha, o que está fundamentado em o direito de escolha da pessoa em relação ao seu final da vida, e em relação aos processos. Você está reafirmando que a pessoa é responsável pela sua vida e que ela pode fazer escolhas.
SUICÍDIO E OS PROFISSIONAIS – DESAFIOS E DILEMAS
Maria J. Kovács é professora do Depto. de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USPPor Redação - Editorias: Artigos - URL Curta: jornal.usp.br/?p=198028ESAFIOS E DILEMAS
Foto: Francisco Emolo - USP/Imagens
Setembro Amarelo é tempo de falar sobre suicídio, um tema tabu que agora tem voz, principalmente no que concerne à prevenção e diminuição do número do mesmo, envolvendo diversas modalidades de campanhas. Mas precisamos focalizar também na esfera dos cuidados com quem tem ideação, tentou suicídio uma ou mais vezes, aos familiares impactados por essas tentativas ou pela morte de seus entes queridos. Cuidados também aos profissionais que perdem seus pacientes, apesar do seu esforço, sentindo-se fracassados e culpados pela morte deles.
Muitos profissionais se perguntam o que fazer diante de uma pessoa com ideação ou tentativa de suicídio. Como mecanismo de proteção, para não se confrontar com sua incerteza, se negam a atender pessoas nessa condição, utilizando manobras defensivas. Observamos que alguns falam mais do que ouvem, julgam clientes e em atitude contratransferencial descontam neles sua incapacidade, dúvida, incompetência, raiva e outros sentimentos, perdendo a possibilidade de escuta. Essa atitude precisa ser revista.
Há profissionais que se negam a receber pessoas que tentam suicídio afirmando que não podem perder seu tempo tão corrido atendendo pessoas que querem morrer, já que precisam se dedicar àqueles que preferem viver. É muito categórico dizer que todas as pessoas que não suportam mais viver a vida atual querem de fato morrer. Há aqueles que não desejam mais viver essa vida, mas aceitariam continuar vivendo, se pudessem eliminar sua dor, sofrimento, humilhação, vergonha, incapacidade, e tantas outras razões. Tratar todos os pacientes, que chegam aos seus cuidados, como se fossem realizar o ato suicida para morrer é escutar os seus próprios pensamentos e ideias preconcebidas, sem conseguir entrar em contato com quem estão buscando cuidar.
Tentativas de suicídio podem ser vistas como ações que têm como objetivo chamar atenção, enfatizando seu aspecto manipulador. Se vistas como ações somente para atrair atenção, podem conduzir a um não cuidado, já que o aspecto manipulador é o que predomina. Entretanto, sob uma outra visão, o ato suicida tem o objetivo sim de chamar atenção para algo que não vai bem na vida da pessoa e, nesse caso, seu aspecto de comunicação é o que fica ressaltado, demandando escuta e cuidados.
Encontramos essas dificuldades mais frequentemente em profissionais que atendem pessoas que buscam os prontos-socorros com sequelas do ato suicida. Chegam assustados, impactados pelo seu ato, ambivalentes por vezes, com profundo sentimento de fracasso, afirmando que não têm capacidade nem para se matar. Ao receber desprezo, preconceito, pessoas que se questionam se vale a pena viver terão mais uma razão para desistir da vida. Trata-se de iatrogenia, formas de atendimento que aumentam o sofrimento.
Há hospitais em que não há atendimento de profissionais de saúde mental, sem proposta de continuidade dos cuidados a quem chega após tentativa de suicídio. Pessoas que realizam o ato suicida voltam ao seu ambiente sem respaldo ou cuidados de saúde mental, desgastados, o que pode estimular a recorrência de tentativas que podem ser letais. Infelizmente a proposta de continuidade de atendimento de saúde mental, como proposto pela agenda de prevenção do suicídio e diminuição de danos de 2006, muitas vezes não é colocada em prática.
Muitos profissionais se perguntam o que fazer diante de uma pessoa com ideação ou tentativa de suicídio. Como mecanismo de proteção, para não se confrontar com sua incerteza, se negam a atender pessoas nessa condição, utilizando manobras defensivas.
O projeto da Organização Mundial da Saúde (OMS) denominado Estudo Multicêntrico de Intervenção ao Comportamento Suicida (SUPRE-MISS) demonstrou como é importante ajudar pessoas que tentam suicidar-se. No Brasil o projeto foi coordenado por Neury Botega, da Unicamp, com resultados significativos na prevenção da reincidência de tentativas de suicídio. Pessoas que tentaram suicídio foram convidadas a participar da pesquisa. Houve uma divisão em dois grupos, no primeiro dos quais foram avaliados e encaminhados a serviços na rede de saúde. No segundo grupo, além do encaminhamento, os pacientes também receberam informações sobre suicídio e fatores que podem levar à tentativa de suicídio. Além disso, o grupo 2 recebeu nove ligações da equipe que os atendeu no hospital, com intervalos crescentes durante um ano e meio e nessas ligações havia estímulo para que procurassem ajuda. Ao fim do estudo no primeiro grupo 2,2% morreram de suicídio e no segundo 0,2 % (Zorzetto e Fioravanti, 2009). É uma diferença muito significativa, que deve ser considerada nos atendimentos para pessoas que tentam suicídio em serviços de pronto socorro. Além de cuidados humanizados, o encaminhamento e continuidade de cuidados parecem ser a melhor combinação para ajudar pessoas com ideação e tentativa de suicídio.
Para um bom cuidado a pessoas com ideação e tentativas de suicídio, precisamos nos dedicar à formação de profissionais de saúde com especialização na área. São poucas as disciplinas que se propõem a discutir o tema do suicídio nos cursos de graduação na USP. No Instituto de Psicologia, a disciplina Psicologia da Morte (PSA 3512) aborda o tema suicídio em três aulas. Em 2018 observamos uma grande procura da disciplina por estudantes de várias unidades da USP, chegando ao número de 333 interações no sistema Júpiter, o que demonstra o quanto estudantes de várias áreas se interessam ou precisam discutir o tema. Pudemos acomodar 100 estudantes na maior sala do IP. Cabe ressaltar também que o maior interesse dos estudantes é sobre o tema do suicídio, o que ficou confirmado pelas respostas sobre a motivação para frequentarem a disciplina e pela escolha do tema suicídio para realizar o trabalho de conclusão do curso. A partir desses dados, apontamos a importância de desenvolver o tema nas disciplinas em vários cursos da USP, enfatizando uma perspectiva multidisciplinar. Além da graduação, é preciso desenvolver o tema também na pós-graduação e estimular pesquisas na área. Oferecemos a disciplina A Questão da Morte nas Instituições de Saúde e Educação (PSA 5861) no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano, em que o tema suicídio comparece em várias aulas. Temos ainda orientado dissertações e teses sobre o tema. É um grão de areia na tarefa essencial de oferecer formação na maior universidade de nosso país. Ainda ampliando esse grão, em 2016 oferecemos a disciplina Suicídio: Prevenção e Luto (PSA 5921-1) no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia USP na pós-graduação a partir do pós-doutorado de Karina Fukumitsu (bolsista PNPD/Capes), Cuidados e Intervenções para Sobreviventes Enlutados por Suicídios. Foi oferecida uma vez, pois era uma das atividades do pós-doutorado de Karina.
Para um bom cuidado a pessoas com ideação e tentativas de suicídio precisamos nos dedicar à formação de profissionais de saúde com especialização na área. São poucas as disciplinas que se propõem a discutir o tema do suicídio nos cursos de graduação na USP.
Ressaltamos que o cuidado a pessoas com ideação e tentativas de suicídio e a familiares enlutados é tarefa para profissionais especializados numa perspectiva multidisciplinar. É importante que o País, nas suas diversas instituições de saúde, constitua um corpo de profissionais que possa coordenar as propostas de cuidados à população com sofrimento existencial nas suas necessidades específicas. Juntamente com as campanhas que desenvolvem atividades para a prevenção do suicídio, utilizando cartilhas, e programas de valorização da vida. É necessário o mesmo empenho para compor equipes multidisciplinares de cuidados nas várias instâncias de saúde mental em nosso país, a destacar os ambulatórios de saúde mental, os CAPS e UBS em todo o País. Essa é a meta proposta pelo Ministério da Saúde na sua Agenda Estratégia em 2016. Quanto à USP, espera-se que possa compor um grupo de especialistas que teria para si a tarefa de empreender a formação de estudantes de graduação, pós-graduação e profissionais para estabelecer discussões e reflexões sobre o tema. E também para elaborar programas de cuidados para a população de estudantes, funcionários e docentes da própria universidade, mas, e principalmente, também oferecer subsídios para muito além da USP, à população brasileira, subsidiando políticas públicas não só de prevenção do suicídio, mas também da posvenção, entendida como cuidados que se propõem a diminuir o impacto das tentativas de suicídio para quem consuma o ato e para familiares que vivem o processo de perda de pessoas pelo suicídio.
"A MORTE PASSOU A SER VISTA COMO FRACASSO MÉDICO", DIZ PSICÓLOGA DA USP
Por:Karine Wenzel/Diário Catarinense
Maria Julia é autora do livro Educação para a Morte
Foto: Arquivo pessoal / Divulgação
Para muitas pessoas, falar sobre morte, ou até mesmo pensar sobre, pode causar mal-estar. Encarada como tabu, o falecimento se tornou distante, asséptico, silencioso e solitário. É o que defende a psicóloga Maria Julia Kovács, que há mais de 30 anos estuda o assunto. O interesse da especialista apareceu com a doença grave de uma tia, que diante da morte eminente queria conversar sobre o tema. Maria Julia resolveu, então, se embrenhar na temática. Em 1986, criou na Universidade de São Paulo (USP) a disciplina psicologia da morte. Atualmente, é professora do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da mesma instituição.
A autora de livros como Educação para a Morte e Morte e Desenvolvimento Humano percebe hoje um movimento de reaproximação das pessoas com o fim da vida, com uma re-humanização do processo, o que seria resultado do avanço da área de cuidados paliativos. Apesar de depender das crenças, valores e histórias de cada um, a psicóloga defende que uma boa morte é aquela sem dor, sofrimento e perto daqueles de quem se ama, e de preferência em casa.
Em entrevista por e-mail ao Diário Catarinense, ela abordou ainda o luto, limites da intervenção médica e como tratar o assunto com as crianças. Confira a entrevista:
Como começou seu interesse por esse tema?
O meu interesse começou por problemas familiares. Uma tia que tinha uma doença pulmonar grave queria conversar sobre a morte dela e o que aconteceria com ela depois disso. Pela insistência dela, comecei a ler sobre o assunto e resolvi torná-lo um assunto acadêmico.
A morte ainda é um assunto tabu na sociedade?
Ainda é, mas cada vez observo um maior interesse das pessoas em falar sobre o assunto, profissionais, estudantes e pessoas sem formação profissional na área. Não há uma forma universal para encarar o fim da vida, depende de características pessoais, da família, da comunidade, questões culturais, idade e o fato da pessoa ter tido experiências de perda anteriores. De qualquer forma, ver a morte como adversária não colabora para uma visão dela como parte da existência.
Mas houve mudança na forma como a morte é encarada?
Houve mudança no sentido de que durante muitos anos se considerou que a morte faz parte da vida e que quando havia o adoecimento se proporcionavam os cuidados, mas havia possibilidade de preparação para a morte que se apresentava. No século 20 e 21, com o desenvolvimento da tecnologia, a morte passou a ser vista como fracasso médico e deve ser combatida a todo o custo. Essa nova forma de ver a morte tem sido discutida e uma re-humanização do processo de morrer surge com o desenvolvimento dos cuidados paliativos.
A partir de qual idade e de que maneira pode-se abordar o assunto?
A forma de encarar a morte tem, sim, relação com fases do desenvolvimento, principalmente crianças pequenas que ainda não compreendem a irreversibilidade e universalidade da morte. Neste caso, é importante comunicar para a criança quando perde alguém que essa pessoa não estará mais presente no convívio familiar. Também é fundamental abordar a universalidade, dizendo que todos morrerão um dia, inclusive ela e pessoas próximas, mas não neste momento. Em outras fases da vida, estas questões já foram elaboradas, mas os sentimentos poderão aflorar e é preciso que sejam acolhidos. Não há uma idade certa para falar sobre o tema, pode ser interessante quando a criança vive uma perda ou quando ocorrem experiências próximas a ela.
Com o avanço médico, consegue-se prolongar a vida. Qual o limite disso?
Com o avanço médico se consegue processos de cura, ou remissão de sintomas, e esses fatos promovem o prolongamento da vida. Esse é um aspecto positivo. Quando o processo de tratamento provoca sofrimento sem benefícios é hora de parar. Um exemplo são as pessoas que
permanecem em UTI por muitos anos sem nenhuma melhora. Há situações em que a morte se torna solitária em unidades de terapia intensiva e em hospitais por conta de horários restritos de visita, não ter possibilidade da presença de familiares, por não se suportar conversar com o paciente sobre sua doença e proximidade da morte.
Conseguimos descrever o que seria uma boa morte?
O processo de humanização da morte leva em conta o paciente, suas necessidades pessoais e seus valores. O conceito de boa morte é subjetivo e leva em conta fatores como história de vida, da família, da comunidade e questões culturais. Mas de maneira geral, é uma morte sem dor, sofrimento, com a presença de pessoas queridas, se possível em casa. Mas em alguns casos, o domicílio não é melhor lugar, então o ideal é abrir espaços de comunicação para que se possa ofertar um processo de morrer sem sofrimento e com dignidade. Cada pessoa terá sua forma de se preparar para a morte. A religião pode ajudar para quem é religioso, para quem é ateu possivelmente aparecerão outros elementos que auxiliem. O processo é singular e depende de fatores como apoio de familiares e amigos, compreensão existencial ou outros.
A morte pode ser considerada uma escolha pessoal?
A morte é um fato na vida do ser humano, a forma de morrer pode ter fator de escolha, o que hoje é discutido de uma maneira mais ampla. Para pessoas religiosas, cabe a Deus o momento da morte, mas mesmo nestes casos, uma escolha pode ser de não ter sofrimento prolongado, ou preservar aspectos que são importantes na vida da pessoa. Sobre as pessoas conseguirem escolher como querem morrer, é uma questão que está ganhando mais espaço, por meio de discussões nas instituições de saúde, nos hospitais, na academia em vários fóruns, também na imprensa. Se não podem exatamente escolher como morrer, já podem falar sobre o que é importante para elas.
A senhora diz que as pessoas estão afastadas desse processo de morrer. Como mudar isso?
É importante a comunicação entre pacientes, familiares e profissionais de saúde, falando sobre o que é importante para cada pessoa. Atualmente, as diretivas antecipadas de vontade dão indicação de que tipo de tratamentos a pessoa não gostaria de ser submetida.
Como pacientes e familiares devem lidar com a morte eminente?
Uma forma de lidar com a morte eminente é poder se comunicar a respeito, buscar ajuda se a angústia estiver muito forte, se o paciente estiver lúcido, poder conversar sobre o que ele precisa, suas necessidades, seus desejos. E os profissionais de saúde? Eles estão preparados para isso, para dar apoio aos pacientes? Cada vez mais se discute a necessidade de inserção de disciplinas na academia sobre a questão da morte e a relação profissional de saúde com pacientes e familiares. Se os profissionais não estão preparados, precisam ter a consciência de buscar ajuda para se preparar. Quem vai trabalhar em hospitais, postos de saúde precisa saber que em algum momento vai lidar com a perda de pacientes e cuidar da sua formação nesse sentido
Há uma fórmula de como lidar com o luto? É possível minimizar esse sofrimento?
Não há fórmula para o luto, só é possível acolher o sofrimento. Ao ser acolhido e buscando um sentido para a vida mesmo com a perda de uma pessoa significativa, ocorre o processo de elaboração do luto. Mas é importante lembrar sempre de considerar as questões pessoais, a cultura, a família e outros aspectos que podem influenciar o processo. É difícil dizer qual tipo de luto é mais difícil de superar, pois cada uma tem características diferentes. Na tragédia o grande problema é a morte violenta, repentina, invertida (filhos morrendo antes dos pais), o que torna o luto difícil. No caso das mortes prolongadas é o tempo de sofrimento antes da morte, às vezes por anos com sofrimento diário, que torna todo esse processo complicado.
Há realmente as fases de luto?
Durante muito tempo se trabalhou com fases do luto, que ajudam a sintonizar as necessidades da pessoa. O perigo é que se transformem num molde ou padrão. Atualmente se procura observar o processo da pessoa e as suas necessidades. A melhor ajuda que podemos dar nesta fase é se mostrar disponível ao que a pessoa precisa, se é consolo, conforto, esclarecimento, ajuda nas tarefas cotidianas. Mais do que falar, é essencial a escuta cuidadosa e encaminhamento para ajuda profissional, quando necessário, em situações de risco de adoecimento e sofrimento intenso.
Como o país está na área de cuidados paliativos?
Estamos avançando, mas ainda muito atrasados. O principal desafio é tornar essa modalidade conhecida, expandir o número de programas, atender a um maior número de pessoas necessitadas dessa modalidade. A principal vantagem é garantir qualidade de vida até o final da vida, diminuindo o sofrimento em doenças sem possibilidade de cura e com múltiplos sintomas.